Um Tiro no Escuro
A sirene rebentava-lhe os tímpanos com uma
violência que há muito não sentia. Tanto tempo sentado naquela secretária velha
e carunchosa a ouvir os estalidos secos das máquinas de escrever, as portas a
abrir e a fechar. Estava habituado aos processos, aos depoimentos, às
reprimendas da sua chefe autoritária e perfeccionista, não a cenas de acção, de
suspense. Tinha sido ferido na coxa esquerda havia uns bons anos; quando ficou
bom já tinha sido despromovido para a papelada, apanhado pela idade, pelo
salário confortável, pelo medo de arriscar de novo a vida por um punhado de
teimosias, que entretanto perdera.
O frio de Novembro apertava-lhe a garganta com uma
sofreguidão seca, mal conseguia engolir a saliva. Os ossos enrijecidos das mãos
prendiam-se à curva do volante, engatar as mudanças era um martírio. Fazia
ultrapassagens perigosas, arrastando consigo o pó da estrada, transportando no
seu coração o peso do medo e da ansiedade.
Estava
praticamente a anoitecer quando, ao fumar um cigarro antes do jantar, na sua
varanda, avistou alguém na rua, que reconhecia de há uns anos. Não teve tempo
para pensar duas vezes e num instinto, que a Polícia lhe tinha transmitido como
uma doença contagiosa, quase saltou da janela do seu 3º andar. Sozinho,
esfomeado, terrivelmente acordado, lançou-se numa louca perseguição que, por
momentos, lhe parecia irreal. A dúvida assaltava-lhe o raciocínio. Estaria ele
ainda a perseguir o mesmo carro? Teria ele visto a pessoa certa, quando quase
caiu da varanda abaixo? Não importava! Para ele, era uma questão de honra, de
sobrevivência! O carro que perseguia não podia ir assim tão depressa! Parecia
saído do ferro velho!?...
António já passara dos quarenta e o cabelo começara
a escassear e a tomar tons grisalhos. Era essencialmente um polícia desiludido,
conformado com a sua cadeira apertada, com a sua condição pouco activa. Ele
mesmo reconhecia que tinha deixado de ser um bom profissional da polícia para
passar a ser um bom secretário... Era raro ter boas ideias, ou ideias sequer.
Convivia muito pouco. Lia o jornal todos os dias e isso bastava-lhe para poder
comentar algumas notícias da actualidade ou do futebol com os colegas, à hora
do almoço. Mas, não tinha intenção de se manter a par das novidades tecnológicas,
das invenções que a própria Judiciária tinha introduzido nos últimos anos. Um
sujeito fechado, acomodado ao sistema de uma sociedade de indivíduos que só
sabem ver televisão e comer às horas certas. Contudo, António não era uma
pedra, um monstro implacável capaz de pisar em cima dos outros para subir na
carreira, chegar ao topo do mundo. Pelo contrário, quanto mais baixo estivesse
e menos confusão lhe arranjassem mais feliz ele vivia. No entanto, não era por
esse ideal que ele perseguia aquele careca com feições de cavalo. Não seria com
certeza com a intenção de obter um cargo ainda menos responsável ou para o
isolarem numa cave, sozinho, onde o pudessem esquecer. Perseguia-o com o
intuito de vingar uma vítima, de apanhar um bandido que andava à solta, sem
julgamento, procurado pela polícia fazia dois anos e meio. O bandido que lhe
esburacara a perna numa cena lamentável em que António o pretendera deter!
E ele era só raiva, só medo. O sentimento de
vingança misturava-se com as palavras fortes gritadas pela sua chefe, com a dor
que sentira ao ser apunhalado, com a humilhação de ser um polícia coxo e fraco,
posto de parte pelos colegas e superiores, sempre que se efectuava uma rusga. A
vingança não era ou pelo menos não podia ser a palavra de ordem. Justiça, sim.
Se era polícia, se tinha o carro estacionado à porta de sua casa, se esperava
pelo jantar para depois voltar à Judiciária, porque não sair em perseguição de
um criminoso fugido à Justiça que ele topara da varanda de sua casa? Seria,
portanto, natural que ele estivesse àquela hora a correr atrás de um carro que
ele sabia ser do tal careca procurado. Sim, por vingança ou por justiça, ele
tinha o dever e o direito de o prender!
O careca perseguido tinha-se enfiado por umas ruelas
de Odivelas. O escuro e o nervosismo começaram a baralhar António. Perdera o
barulho do motor velho do carro.
«E agora?...»
Não perdeu logo a esperança de voltar a encontrá-lo. Algo o confortou.
Pensou, confiantemente, que se o apanhasse voltaria a ser o homem que em tempos
fora. Seria felicitado pelos seus colegas, pela sua chefe, pelo porteiro do
edifício, pelos inspectores, pelas secretárias, pelos empregados do restaurante
onde ia almoçar todos os dias. Quem sabe até se não o poderia encurralar num beco,
prendê-lo à frente de um magote de gente... uma luta, uma pequena corrida, uns
socos, um tirinho ou dois para o assustar...!
«Não. Calma, António…» pensou, gritando. «Sê
racional, usa as células cinzentas!»
Seria preciso voltar ao passado, lembrar o que lhe
parecia tão distante. Como recordar algo que aprendera há vinte anos?
Cortou à direita, numa rua deserta, e desligou as
luzes do carro. Deixou-o deslizar devagarinho, como um gato que caça escondido
atrás de um arbusto. Abriu a janela toda. O frio despertava-lhe uma qualidade
estranha, uma excelente capacidade de audição e de olfacto. Conseguiria escutar
e cheirar no mais profundo do silêncio e do escuro. Fechou os olhos para se
concentrar. Podia ser que, de repente, lhe caísse uma pista no colo, uma ideia
brilhante.
Não havia movimento nas ruas. As pessoas jantavam
todas àquela hora. Imaginou-se representado numa cena da novela das nove. Para
o simples telespectador, era a luta entre o Bem e o Mal, uma vulgar e pouco
entusiasmante cena de perseguição, sem tiros, sem sangue ou acidentes na
estrada. Engoliu em seco quando imaginou que naquele seu episódio, o bom da
fita, ele, não conseguiria levar a melhor sobre o mauzão, e tudo acabaria em
frustração, em mais um dia normal de frustração calada. Em novelas, isso não
fazia muito sentido, mas na realidade, ele era a prova viva de que as boas
intenções da Justiça não eram sempre recompensadas.
«Deduzir ou induzir» tinha sido a sua primeira lição
há vinte anos atrás... Perseguira-o que nem um louco até um bairro degredado de
Odivelas. O careca obrigara-o a segui-lo... Ele era o maestro da operação; a
intenção dele tinha sido arrastá-lo para um local calmo e perigoso e de pouca
luminosidade. Mas o carro tinha desaparecido mal entrara por aquelas ruas?
«Teria ele entrado para uma garagem?»
Concluiu não existirem garagens por aquelas
bandas; as casas eram muito pobres, os carros velhos que por ali paravam
estavam estacionados nas ruas. Mas também podia ser possível que o careca
tivesse encostado o seu carro junto a outros, velhos como aquele, e o polícia
não tivesse reparado quando passasse por ele. Dessa forma, muito elegantemente,
mal António seguisse a sua ronda, o carro velho perseguido efectuaria uma marcha
atrás silenciosa e desapareceria pelo lado contrário.
António abria os olhos, as narinas, os ouvidos e
sentia o vento do Outono bater-lhe na cara, vermelha e transpirada com o calor
da emoção. O mínimo barulho era pretexto para pensar que ia ser atacado pelas
costas, pelo imprevisto, pelo careca que perseguia. Pura ilusão. Passara por
lixeiras, ferros velhos, casas destruídas, esqueletos de carros antigos. Mas,
nada! Nem sinal do homem, do veículo.
«Mais vale desistir... já estou nisto há hora e
meia!»
A dúvida continuava a zumbir nos seus ouvidos. Porque
o teria levado ele para aquele sítio? Como teria ele desaparecido assim, tão
repentinamente, dentro de um bairro tão deserto e pequeno?
«Claro! Só pode ser isso!»
Sentiu o coração dançar dentro do peito com a
ideia magnífica que acabara de ter. Podia estar errado, mas tinha grandes
probabilidades de ter razão. Por outro lado, se tivesse razão, o que faria ele?
Aproximar-se-ia do criminoso, apontando-lhe uma arma e diria: «Estás preso,
careca d’um raio! Sai desse carro e reza para que eu não te enfie um tiro no
crânio!». Mas, e se ele estivesse à sua espera? Se tivesse uma pistola pronta a
disparar, uma faca aguçada? Se o matasse? António, cego pela teimosia e pelo
orgulho, decidira não pedir reforços pelo rádio. Estava sozinho. O que fazer?
Não pensou mais nas possíveis consequências. Antes
de tudo na vida, tinha que confirmar a sua ideia, verificar se estaria
correcta. O resto, que se lixasse! Já não era a vingança ou a Justiça, era o
seu instinto policial que parecia ter voltado num momento complicado, em que
travava um combate com o próprio medo de morrer. A coragem, a fé e a
inteligência unidas contra o crime e a favor da sua dignidade de homem e de
polícia.
A resposta podia muito bem-estar no ferro velho por
onde passara logo no início. Parecia ter-lhe cheirado um leve odor a queimado,
quando por lá passara. Aquele carro velho podia muito bem ter-se disfarçado no
meio de todos os outros, “camuflar-se”. Quieto, parado. O careca escondido no
banco de trás. Uma manta a tapá-lo. António jamais se lembraria de entrar no
ferro velho. Mas, lembrou-se, e voltou, então, atrás. Calmamente, entrou no
local e procurou por entre os carros desfeitos, uma matrícula igual à que
decorara anteriormente. Procurou. Procurou. Cheirou, ouviu, sentiu, mas não
encontrou o carro, nem o careca.
Cansado e cheio de frio e de fome, deu meia volta e
regressou ao centro de Lisboa. Já não iria trabalhar àquela hora. Ia para casa,
desculpar-se com a mulher, embora não lhe contasse o que teria acontecido. Na
viagem de regresso, António recuperou o ritmo respiratório normal e, mais uma
vez, desdramatizou a situação.
«Apesar de tudo, foi uma boa ideia...»
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