O Autocarro 2




Oh que dia! Atarefado, ocupado, cheíssimo de compromissos, pensamentos, projectos, sonhos, risos, conversas optimistas, imagens animadoras! Que futuro brilhante o seu; sabia exactamente o que queria, o que se iria passar. Era como se estivesse apaixonado pela vida e sorrisse feito tonto para as pessoas melancólicas que por ele passavam. Já não era um qualquer transeunte, um rosto comum, era alguém que encontrara um indício de felicidade, um emprego à sua medida, uma forma de realização profissional que o fazia esquecer tempos difíceis de procura, de solidão, de preocupações.
Hugo ainda não tinha carro. Era essa a sua principal teimosia material, assim que começasse a ganhar uns bons dinheiros, era para aquele Honda cinzento do stand da sua rua, o seu carro de sonho. Mas, enquanto isso não acontecia não tinha outro remédio senão apanhar o 2 todos os dias, uma viagem longa entre a Serafina e o Rossio, durante a qual se habituara a ler o jornal de manhã e no regresso, à tardinha, cansado de um dia de trabalho, procuraria um lugar lá ao fundo onde ninguém o pudesse chatear, e, encostando a cabeça ao vidro da janela, pensaria nos afazeres do dia seguinte, no que iria fazer para o jantar, naquela conversa interessante com o colega, naquele projecto que tinha em mente.
Encontrava-se agora em pleno Rossio, rodeado de lama e água, à espera do 2 que teimava em não aparecer havia quase uma hora. O outro, por pouco o perdera, não teria alternativa senão esperar pelo próximo. O Rossio estava em obras, aliás parecia-lhe que Lisboa inteira se transformara num estaleiro. O caos era inevitável com as chuvas, o trânsito, o mau humor das pessoas. Mas, Hugo estava feliz, absurdamente feliz e nem os 57 minutos de espera pelo autocarro o fariam mudar de atitude. Distraíra-se com o chapéu-de-chuva da jovem à sua frente. Era uma banda desenhada do Tin-tin e do seu cãozinho Milou. A história era interessante, Hugo esteve quase a pedir à dona do chapéu o favor de o girar, porque estava interessado em ler o resto da história. Mas outros pensamentos o assaltaram e o levaram para longe dali. Ouvia as injúrias e as lamentações das pessoas. Era sempre o mesmo, as mesmas reclamações, as mesmas pessoas àquela hora. Mas, quando o autocarro chegava a horas e as transportava prontamente aos seus destinos ninguém se atrevia a agradecer ao motorista, a elogiar o serviço da Carris, afinal eram bem mais as vezes que o autocarro passava às horas certas do que quando se atrasava. Mas, naquele dia tenebroso de Inverno, já escuro, a chover e a ventanejar, era um abuso, uma falta de consideração, um atentado à saúde pública!
Hugo era jornalista havia pouco tempo. Adorava a sua profissão, era dinâmico, empreendedor, optimista e um excelente observador. Para ele, a vida era bem mais simples do que as pessoas pintavam, a diferença entre a paciência e a alegria dele e o mau humor dos que para ali estavam a praguejar era tão-somente a felicidade. E ele tinha orgulho em assumir essa consciência de que era feliz, realizado. Mas, também devia parte dessa paciência ao poder da imaginação e da reflexão, era assim que se entretinha quando não tinha outro remédio senão esperar. E, enquanto uns perdiam amor à carteira e apanhavam um táxi, Hugo deixou-se ficar, perdido entre pensamentos divertidos, irónicos, sarcásticos.
O 2 aparecia virando a esquina da Praça da Figueira, já vinha cheio do Terreiro do Paço. O caminho foi duro, lento e sufocante. As pessoas amontoavam-se, acotovelando-se, procurando lugares, espaços mínimos onde se pudessem encaixar. Hugo aninhou-se no fundo do autocarro e agarrou-se ao varão com firmeza. A meio da Avenida da Liberdade conseguiu um lugar apertado entre um cesto de flores de uma passageira e o vidro da janela. Descansou; só sairia na última paragem. Esqueceu o incómodo das flores e retomou o seu hábito de todos os dias... Tinha tanto em que pensar!
A cor do céu entristeceu-o, era de uma cor sem cor, opaca. Um espelho de desgostos, crueldades, agonias e silêncios forçados. Estava feliz, mas não era egoísta. Sentia que ao seu lado, lá fora, onde quer que fosse, existiam problemas, mentes complicadas, pessoas infelizes. Teve pena, senão fosse por esse estranho e repentino sentimento de tristeza o seu dia teria sido com certeza um belo dia. Adorava observar as pessoas no autocarro, mas às vezes enjoava-se; todos os dias eram as mesmas pessoas, as mesmas caras de enterro, os mesmos sacos. Já tinha inventado histórias para aquelas personagens aparentemente sempre iguais, previsíveis, rotineiras, e como era jornalista, desconfiava terrivelmente daquelas capas, daqueles disfarces de pessoas normais e desinteressantes. E imaginava os seus mundos secretos, os seus pecados, as suas fantasias, as suas experiências de vida mais ousadas. E por outras palavras, conseguia por aquela gente, sempre tão amorfa, tão igual, a falar, a rir, a contar segredos e a exprimir as opiniões mais sinceras e espontâneas.
Naquele dia, a maioria das personagens não lhe era familiar, tinha saído mais tarde do emprego. As pessoas que viajavam àquela hora consigo, já estariam em casa porque tinham apanhado o 2, que passava às seis e dez. Olhou, então, para os pedaços anónimos daquele autocarro e analisou.
«Um velho a dormir, dois adolescentes com a cara vermelha e as calças sujas, um fulano com ar de poucos amigos, um polícia com um bigode farfalhudo, uma dona chique com pulseiras de ouro, a rapariga do chapéu-de-chuva do Tin-tin, entre muitas outras, daquelas que parecem iguais todos os dias...»
Estava pouco inspirado para inventar histórias, por isso desistiu de observar as pessoas. Resolveu olhar pela janela, meio embaciada, para saber onde estava a passar. Estava a chegar ao Marquês de Pombal, ainda faltava muito, o trânsito estava uma confusão! Imaginou as pessoas na paragem do Marquês a perguntarem ao motorista «Passa nas Amoreiras?». Até ele estava farto de ouvir aquela pergunta todos os dias, imagine-se os motoristas que, com toda a paciência do mundo, respondiam sempre o mesmo «Não. Passam todos menos o 2 e o 12!».
Naquela distracção, Hugo mal se apercebera de um burburinho que aumentava dentro do autocarro. As pessoas ganhavam vida, cor, movimento, som. Começaram a bater nas janelas e a gritar «Larguem-no! Larguem-no!». O jornalista abandonou a sua imaginação e concentrou-se. Esfregou o vidro com a manga e olhou com urgência. Lá fora, a apenas uns metros de distância, acontecia uma cena de violência. Um rapaz era brutalmente espancado por um grupo de três ou quatro. Hugo tinha reparado nele uns segundos antes do autocarro chegar à paragem, caminhava com calma, ouvindo música no walkman, com uns livros debaixo do braço, dirigindo-se à enorme fila que esperava o transporte. Teria sido atacado pelas costas, logo ali, ao virar da esquina do Parque Eduardo VII? Os rapazes que o agrediam eram negros e estavam vestidos como os rappers americanos; o agredido, deitado no chão, recebia socos e pontapés indiscriminadamente. O walkman rolara, os livros espalharam-se pelo chão e o rapaz sangrava da boca. A cena durara dois minutos, se tanto, o suficiente para que o 23 arrancasse finalmente à frente do 2, e aquele cenário se desconjuntasse. Os passageiros tinham assistido a tudo, a porta de trás estava fechada, não havia nada a fazer a não ser gritar, bater nos vidros.
O autocarro ganhou vida, mas estava toda a gente furiosa, ainda mais mal-humorada... Praguejavam contra os pretos, «esses filhos da mãe!.. Que fossem para a sua terra! Malandros!!». Hugo estava em estado de choque. Não tirava os olhos do polícia do bigode farfalhudo. Estava encostado à porta de trás, era tão fácil, bastava pedir ao motorista para abrir a porta... mas, o homem ficara incólume, inerte, indiferente aos gritos das pessoas, à agressão que se registava à sua frente. À possível morte do rapaz. Para Hugo era evidente, a culpa não era dos negros que estavam em Portugal, era daquele polícia, fardado, com o chapéu enfiado na cabeça.
Hugo era bem capaz de compreender o amorfismo das pessoas normais, dos civis, viviam para si próprias, para as suas famílias, para as suas casas; mas, era incapaz de conceber que um agente da autoridade se comportasse de forma tão cobarde, tão indigna!
O autocarro subiu até perto das Amoreiras e virou para Campolide. Os ânimos ainda estavam exaltados, e houve até quem se atrevesse a interpelar o polícia, porque não tinha feito nada... respondia que não iria adiantar se os prendesse, daí a pouco estariam soltos. Hugo perguntou-se se ao menos o rapaz estaria bem, vivo, sem nada partido, ou se estaria morto, com a coluna fracturada? Questionou-se a respeito do destino, se o polícia tivesse saltado do autocarro em socorro do rapaz, teria ele evitado uma morte, um ferimento grave?
Achou tudo aquilo patético, ridículo, completamente absurdo, e apercebeu-se que vivia numa realidade desfasada, como se aquela sociedade estivesse disposta em desenhos estáticos em folhas de acetato, e todas elas, sobrepostas, dariam a impressão de um todo que se articula, mas que no fundo nada têm a ver umas com as outras. Mas, aquele era também o seu estranho mundo, no qual se habituara a viver e que ele tão bem representava nos seus artigos e crónicas. «Um Mundo às Cores.» Era o último que escrevera. No meio da confusão e da diversidade dos povos e dos indivíduos, existia uma harmonia única, com ritmos e vivências diferentes, cores e cheiros, mesclas formidáveis. E habituara-se a analisar o mundo assim, com tolerância, espírito humanitário, mas também científico. Mas, aquilo não fazia sentido no “seu mundo às cores”. As pessoas pareciam não fazer sentido. «De quem é a culpa?» pensou.
Sentiu-se ele próprio culpado por se não ter levantado do assento e ido até lá salvar o rapaz. Porque havia de culpar somente o polícia? O homem era um fraco, um acomodado, não se quis dar ao trabalho de se meter em apuros, de prender alguém àquela hora, de chamar uma ambulância e um carro da polícia. Ia para casa depois de um dia a passar multas ou a dar indicações nas ruas. Estava cansado, era isso!
A noite escura invadia Lisboa. O polícia saiu três paragens antes da Serafina e as pessoas voltavam lentamente ao silêncio, aos olhares parados e cansados. Hugo tentou compreender por que razão teriam atacado o rapaz. Não adiantaria. Por mais perguntas que fizesse a si próprio, a culpa nunca seria de ninguém.  

 (Escrito em abril de 1997 e publicado no DNJovem em outubro de 2001)

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