À Sombra das Luzes




Acordara a meio da noite, banhado em suor, o coração descontrolado, uma mancha amarela de urina cobria o lençol. Sonhara de novo com os tremores da sua cidade, que os prédios se desconjuntavam como construções de areia. Que as igrejas se enterravam no lamaçal da baixa de Lisboa. Que o intenso cheiro do queimado o invadia, ameaçando, sufocando hipóteses de sobrevivência. Não quis voltar a dormir. Refugiou-se na cozinha, junto ao fogo, e fez um chá de cidreira para acalmar o estômago. Esperou, então, sentado no seu cadeirão de madeira brasileira, que o sol se levantasse, para que pudesse confirmar que o seu sonho não se repetira, que Lisboa estava intacta, tal como Pombal a reconstruía.
Sem querer, adormeceu de novo, suavemente, embalado pelo silêncio do escuro, pelo calor da infusão. Observavam-no os grandes e pesados livros das estantes, que tinham sido protegidos com tiras de madeira, para evitar que um futuro terramoto os deitasse de novo ao chão, os estragasse de vez. Eram muito valiosos para Duarte, a sua maior riqueza desde que se arruinara com os negócios de têxteis na Companhia do Maranhão.
Duarte Nunez era um velho fidalgo que perdera a fidalguia, o seu património e alguma da sanidade que lhe era característica. Saía pouco da sua casa, um velho palacete que ficara em ruínas, desde Novembro de 55. Era um crente, e como tal, acreditou que a provação pela qual tinha passado o tinha ensinado a ver o mundo de forma bem diversa. Mas, ao invés de construir ideias optimistas, Duarte enveredara pelo caminho errado. O caminho do medo e da obsessão. E frequentemente tinha estes sonhos, que tudo voltara a acontecer. Que o terramoto teria voltado para arrasar de vez com o que sobrara da cidade.
A vela consumia-se ininterruptamente. A sala ficou escura e gélida; o silêncio despertava com o sino da Igreja mais próxima. As badaladas calmas e metálicas acordavam os espíritos mais preguiçosos. A amostra do sol vermelho entrou pela abertura do varandim e brindou o rosto de Duarte, que esperava, dormindo, pela luz do dia. Não precisava levantar-se para ver que Lisboa ainda lá estava. Ela repousava a seus pés, tranquila e infantil, espreguiçando-se com os contínuos sons das badaladas, com os primeiros pregões da manhã.
Descansou. Respirou fortemente e inspirou cheiros desconhecidos, misturados, confundidos com a leve brisa do rio, o odor a peixe seco, o fogo das tochas apagadas. Amava Lisboa.
Procurou num livro escuro e meio desfeito uma informação. Interessava-se pelas novas ciências que surgiam, por História, Geografia. Mas, os livros que tinha estavam sempre desactualizados, sem rigor, plenos de preconceitos, de teimas antigas. Esse era o seu lado moderno, iluminado. Não se interessava propriamente pelo conteúdo específico de um texto científico, era mais pela vontade, pela curiosidade de aprender, de formular perguntas na sua mente. E sorria sozinho, inventando mil questões, pondo tudo em dúvida, inclusivamente Deus. Mas, no fim, observava Lisboa do seu varandim, a partir da colina do Castelo, e certificava-se que Deus era magnânimo, que a qualquer momento se poderia revelar num raio de luz sobre o Bairro Alto, numa apetitosa chuva de Verão, ou num temível castigo, um terramoto, uma série de incêndios, uma epidemia devastadora. Lembrou-se, então, que devia ir, num desses dias à missa. Ajoelhar-se perante o crucifixo, confessar-se, conversar um pouco com os santos. Sentir o frio do eco da Igreja.
Era um velho louco, pensava. «No meu tempo de criança, a devoção ao culto, ao Deus Nosso Senhor, fazia parte da magia diária do povo português... hoje, se vou à missa e se me reconheço católico, só tenho a cumplicidade das velhas beatas que choraram João quinto.»
Nem podia, de facto, recordar-se dos seus dois filhos, jesuítas de formação, mas expulsos da Bahia para a Província de Itália. O seu mundo abalara entre as décadas de 50 e 60. Primeiro, o terramoto, a ruína da sua casa, dos seus negócios de panos, a mulher Beatriz, morta, logo enterrada entre os escombros do Carmo. Depois, o Brasil. Bahia, Maranhão, enfim, São Paulo. A crise da escassez dos metais. A bancarrota de novo. Os filhos desterrados. A esperança das novas Companhias de Pombal. Sozinho e com esperança de reconstruir a sua vida, de encontrar as luzes na imensidão das florestas. E a esperança era a pior companheira que Duarte encontrara; impedia-o de tirar a sua própria vida, mas afastava-o de um mundo de cruéis dificuldades, e cedo se deixou embrenhar pelo delírio de querer coisas que não existiam.
Refugiara-se, então, nesses livros, alinhados na biblioteca do seu salão. Confiou-se a eles como já há muito se não entregava a qualquer ser humano. Devorou Holandas e Resendes, Góis e Fernão Lopes. Experimentou as novidades francesas. Gostou de Rousseau, mas achou-o louco. Teve ódio e atracção por Voltaire; detestava-o, mas a sua imaginação era contagiante, não tinha forças para lhe resistir.
Duarte Nunez colocou sobre a camisa de noite o seu roupão de lã e saboreou um pedaço de queijo, com pão do dia anterior. Rezou uma Avé-Maria ao mesmo tempo que engoliu um copinho de leite. Lembrou-se que tinha de mudar a roupa da cama.
A sua casa era uma peculiar peça de artesanato urbano. Conservava apenas, naquele momento, metade da habitação em bom estado, que havia recuperado pouco depois do terramoto. A outra metade, sobranceira à encosta oriental do Castelo, permanecia inerte, por entre ruínas e paredes incompletas, esburacadas, o tecto partido ao meio.
Duarte Nunez, o comerciante de ascendência sevilhana, que habitara uma vez esse palacete, não teria tido coragem ou cabedal necessários para reconstruir essa outra metade da casa. Gostava de se passear pelos destroços, sentar-se à sombra, num degrau de escada, apreciar os contrastes do lusco-fusco, os brilhos do sol tímido no chão sujo e áspero. Sentia dentro de si um sino a dobrar, um espírito estranhamente antigo, espiritual, medievo. E era aí que se identificava com a sombra, com o escuro.
Os garotos de recados e os homens despeitados gritavam-lhe da rua, por entre as fissuras abertas, «Ó velho fidalgo! Perdeste a fidalguia? Agora és pobre coitado!».
De noite, caía à cama, com o esquecimento dos velhos, sonhando com o escuro, a morte, o terramoto. A fé, essa velha companheira de sempre, acordava-o.
Desejaria, assim, todos os dias, sentado no seu cadeirão de madeira brasileira, que a luz o invadisse pela manhã e o brindasse com aquela frescura tão confortável, tão contemporânea. Tão real.


(escrito em agosto de 2001 e publicado em janeiro de 2002 no DNJovem)

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