Querida Cita
Sentia a tijoleira quente e
rugosa. A cor escura desaparecia e juntava-se, em fricção, às solas dos seus
pés dançantes e delicados. A brisa suave abraçava-a, abençoava-lhe o espírito
como uma baforada divina de Neptuno. Tinha os olhos fechados e os braços
abertos, como se dançasse com o mais perfeito dos homens. O riso da alegria,
ouvia-o dentro de si, fazia-o transparecer através de um sorriso humilde e
aliviado. O pequeno enorme oceano que a espreitava através daquela varanda, parecia
cantar-lhe uma canção de embalar, servi-la, protegê-la com a segurança dos seus
rebentos e da sua idade eterna.
Era uma noite como qualquer
noite normal de Verão. Não... era a noite, a vitória, o acabar de um
plano maléfico e magnífico. O livro desejado. Só mais um. Aquele. E o seu modo
de celebrá-lo era ouvindo todos os discos de swing que tinha em casa,
até escutar a canção mais perfeita.
Apertava na mão uma groselha
fresca. A sua respiração ofegante parecia querer controlar-se; sentia acima de
tudo um orgulho demoníaco que podia ser extremamente perigoso. Um passo em
frente para a desgraça, para o fracasso. Era necessário ter medo, insegurança,
modéstia. Mas, aquela era a celebração da sua vitória pessoal; aquele envelope
amarelo era o convidado de honra, o melhor amigo que a ajudara nos momentos de
desespero. Ele era o espelho de mil personagens diferentes, que se reflectiram
uma vez no rosto de Cita; que gritaram e riram bem alto, tão alto como as
nuvens, como a própria trovoada. Vozes que conversaram com aquela mulher
pálida, que quase a enlouqueceram, que a cumprimentaram todas as manhãs, que
lhe contaram segredos e paranóias, que a fizeram rir e chorar.
E Cita, pensando na alegria
de ter encerrado o derradeiro capítulo, de ter dado um título misterioso ao
manuscrito, dançava sozinha com um copo na mão, brindando ao sucesso, não dos
números ou cifrões, mas ao sucesso de ter sobrevivido mais uma vez a uma
duríssima prova de fogo, ao combate mortal entre ela... e ela.
Sentou-se e olhou as
estrelas, a pequena lua, as nuvens passageiras, as gaivotas transeuntes.
Descansou a cabeça sobre as mãos, as mãos sobre o muro divisório e tentou não
pensar em nada. Não sorrir. Não chorar. Não lamentar. «Que turbilhão de
emoções, estou cansada delas, apetece-me não sentir mais nada e dormir durante
dois anos, para depois acordar criança de novo. Um mundo onde as emoções sejam
de facto úteis e necessárias à sobrevivência dos homens. Talvez nos
entendêssemos melhor se expressássemos as nossas emoções como as crianças o
fazem. Mas, e se elas deixarem de existir?». Sentiu de imediato uma estranha
melancolia, reflexo do seu cansaço, do seu isolamento.
A música terminava. Estava
de novo sozinha com as suas mil vozes. O mar já não cantava, mas sussurrava
fortemente a sua mensagem de poder. Ela já nem ligava àquele seu vizinho
pretensioso que se gabava constantemente da sua força e da sua beleza. Gostava
de o ver em dias de calmaria, quando parecia mole e apaixonado, vulnerável e
submisso, um ser bem mais humano do que divino. Sentia-se protegida por esse
mar doce, conversava com ele e ouvia-o. E, momentaneamente, sentiu saudades de
pessoas. Gente com quem pudesse fazer o que fazia com o mar. Sentia falta da
filha, do pai, e do seu divertido papagaio.
A gata que vivia com ela não
lhe fazia grande companhia, era rebelde, independente e interesseira. Sempre
que lhe apetecia passear, escapava-se pela janela e fugia. Era capaz de passar
a noite inteira na vadiagem, sem dar quaisquer satisfações. Mas, à hora do
peixe, a esguia e elegante Mary surgia do nada, entrelaçando-se nas pernas da
dona. Cita ria-se muito com ela, imaginava-a uma gata casada e rica, daquelas
que se deliciam a fazer compras em plena Avenida dos Gatos Benzocas, rodeada de
lojas para animais domésticos, escolhendo coleiras de diamantes, as melhores
vitaminas para o pêlo, a gateira mais confortável... Depois, era imaginá-la em
salões de leite, com a companhia das gatas mais fofoqueiras de toda a praia,
bebendo chávenas de leite magro e beliscando uma sardinhita frita. E, antes de
regressar a casa, encontrava-se com aquele gato charmoso, numa alcova muito
privada, onde soltava seus miados de prazer, sem que o Senhor Gato, em casa, à
sua espera, a pudesse ouvir. E era deste modo que Mary fazia companhia a Cita.
Ela era mais uma personagem da sua mente febril.
Havia já muito tempo que se
conformara com essa vida; rodeada de fantasmas, como costumava dizer.
Perguntava-se muitas vezes se o seu trabalho era realmente importante.
Sentia-se tão inútil em certos dias, como se tudo o que fizesse ou escrevesse
não passasse de uma vaga ilusão, de um momento só dela, de puro egocentrismo,
que de nada servia ao mundo lá fora, às pessoas reais. Sentia-se tão só e tão
louca, que podia gritar de raiva, de fúria, chorar de tristeza e desespero, ou
rir às bandeiras despregadas. Ninguém a ouvia, ou censurava, ou criticava. E
tinha tudo para ser feliz, pensava.
Inclinou a cabeça para trás e cumprimentou as
suas vizinhas estrelas. «Como têm passado, minhas amigas? Vocês, que não têm
muito que fazer, devem saber da vida de toda a gente...!» Pareceu-lhe ouvir:
«Nem por isso, minha cara amiga, as pessoas das cidades escondem-se por baixo
de um manto opaco de poluição; raramente as conseguimos ver...».
Riu-se, escondendo a cara
com as mãos. «Que impossível que eu sou, pareço encontrar respostas para
tudo!». Massajou o couro cabeludo com os dedos finos e sentiu o cabelo ondulado
um pouco emaranhado. Deixou-o estar. Pensou em cortá-lo, pintá-lo, fazer algo
diferente com o seu visual. Dizia sempre o mesmo, mas nunca o fazia. Gostava
muito do seu cabelo espontâneo...
O ciclo chegava ao fim. Daí
a umas semanas, o Verão terminaria e ela teria de regressar à cidade, à sua
escola, às mesmas caras de sempre. Às mesmas perguntas de sempre: «Então,
Sotôra, como vai o livro? Quando é que sai? Como é que se chama? É sobre o
quê?». Não que não gostasse de lhes responder, mas sabia perfeitamente que o
interesse era essencialmente momentâneo e vazio. Ainda que Cita lhes oferecesse
um exemplar, duvidaria muito que o lessem. E essa era uma das piores sensações
da vida, saber que escrevia sobre pessoas como aquelas e que passava uma boa
parte do seu tempo a preocupar-se com o destino dessas personagens, mas no fim,
eles iam ser os primeiros a desprezar a sua obra. Ficava feliz quando lia as
críticas, fossem elas negativas ou positivas, mas sabia que algum proveito
seria retirado do seu trabalho, que alguém haveria de gostar, de se
identificar. Provavelmente, só uma pequena parcela de pessoas se atreveria a
comprar e a ler o livro, mas era para essas pessoas que ela escrevia, ainda que
reconhecesse que o primeiríssimo motivo pelo qual escrevia era tão-somente para
sua satisfação. E escrevia o que lhe apetecia sem que se importasse com o que
os outros pensassem. Também não procurava louvores ou aplausos de pé do seu
público. Para Cita, bastava que essas pessoas se sentissem acompanhadas e
compreendidas por uma voz distante que lhes acalentasse os sonhos como ninguém.
No entanto, não queria ser uma rainha, queria ser um agente invisível,
escondido por entre as palavras do seu livro, quando muito, uma amiga pessoal
de cada leitor. Ser compreendida em silêncio. Distrair e transportar o leitor
para onde ele desejasse. E alegrava-se quando pensava que podia concretizar os
seus objectivos. Tudo fazia sentido quando a sua missão era cumprida. Egoísmos
e criações à parte, ser escritora era, acima de tudo, a generosidade de
acompanhar uma pessoa perdida ao encontro de tantas outras, era mostrar-lhes
que não estavam sozinhas no mundo.
Esvaziou o copo vermelho e
desejou boa noite à noite. Segurou o envelope amarelo de encontro ao peito e
apagou a luz do terraço. Desligou a aparelhagem e fechou a janela. Pousou o
copo no balcão da cozinha e encheu o recipiente de Mary com peixe. Caminhou
descalça pela casa à procura da gata. Encontrou-a aninhada em cima da mesa do
telefone. Mary parecia assustada, pequenina demais, magra, susceptível,
abandonada. Estaria doente ou seria apenas uma gatita enfezada a precisar de
colo? Agarrou nela com uma mão, enrolou-a no pescoço e levou-a consigo para a
cama.
Sonhou que as estrelas se riam a ler o seu
livro.
(escrito em outubro de 1998 e publicado no DNJovem em dezembro de 2001)
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