Tari



Tari era uma estranha normal. Roupas normais. Cabelo curto normal. Sapatos normais. O riso era inevitavelmente enigmático e enfeitiçado, um mecanismo que denunciava toda a sua estranheza potencial; alguém que ela tinha sido até àquele dia e que sem perceber, ou sem querer perceber, deixou à solta numa noite caracteristicamente macabra.
O oxigénio faltava onde o calor e o sufoco predominavam, mas um sufoco agradável, um calor inebriante, um delírio delicioso provocado pelo álcool e pela loucura da coragem. Um brinde especial a ela, Tari, pela sua volta, pelo passo gigantesco que empreendera. Por ela e só por ela.
A música inundava-lhe a razão, toldava-lhe a visão jornalística que ela aprendera a usar desde muito nova. A objectiva repousava dentro da bolsa de couro, ao seu lado. Acariciava-a com a mão direita enquanto saboreava o jazz puro e sedutor. Tinha o cabelo espesso, espetado, uma mistura de desalinho com ordem. Suava deliciosamente, de olhos fechados, cabeça encostada à parede. Botas estendidas no vácuo, copo de vodka na mão esquerda, camisa meio desapertada, um vago contorno do seio. Estava fisicamente exausta e o seu espírito exalava uma felicidade extra-sensorial. Tudo à sua volta eram imagens, fragmentos de um puzzle, histórias sem sentido, jogos de luzes e sombras. Projectava na sua mente esses pedaços de vida e morte como se contemplasse um álbum de recordações.
Tari era de poucas falas, simples e simpática, mas possuía um universo recortado aos bocados dentro do seu entendimento. Um universo nem sempre partilhado.
Abriu os olhos e observou o pub. Lá estavam as imagens de novo, o movimento a pedir paralisação. Mas, Tari não se mexia, recusava-se a usar a máquina. «Agora, não!», agora não podia, tinha que deixar o coração libertar-se. «Tari, estás de volta...»
Como sentira saudades daqueles tempos em que a realidade que testemunhava deixava de ter espaço, tempo e razão de ser. Ela roubava-a. Enquadrava-a na sua própria perspectiva e arrancava-a de lá sem dó nem piedade! E como adorava desconstruir a ordem das coisas, tirar daqui, acrescentar ali, dar azo à sua dislexia, à sua paranóia de fazer recortes e colagens na realidade que os outros concebiam normal... E até com o seu nome brincara. Cortara-o ao meio e trocara as sílabas de lugar… que vulgar seria Rita!
Que gargalhada apetecível. O riso estranho da arte. O egoísmo. A independência. A felicidade extremista de voltar a ter talento, inspiração, sorte, a ajuda do tempo e do espaço. Tudo coordenado para que as imagens de Tari se convertessem em pequeninas obras de arte. Imagens roubadas, entre milhares delas. O gosto mecânico ao premir o botão, o gatilho, era algo que já nem sentia. Algo demasiado familiar, inerente. O que definitivamente ainda a surpreendia era a sensação de conseguir uma imagem rara, diferente, genial. Essa procura pelo momento perfeito nem sempre acontecia. Disparara milhares de vezes, captando pessoas, lugares, acontecimentos, sem que tivesse essa sensação. A Fotografia enquanto profissão podia ser bem penosa, uma obrigação. O jornalismo não lhe teria dado a oportunidade de criar, apenas de reproduzir uma verdade na sua faceta mais realista, mais aproximada. Enquanto arte, Tari sentia orgulho nessa capacidade de captar momentos únicos, nem sempre úteis como as fotos que tirava para o Jornal, mas o que importava isso? A arte era um exercício de egoísmo. Em contrapartida, o seu trabalho era importante, com ele, podia perpetuar a memória das pessoas em relação ao passado, e assim, este não era só pó, a recordação mal contada de uma testemunha velha e meio doida.
O calor diminuía-lhe o fluxo de oxigénio no cérebro e a música, sensual, urbana e perigosa, hipnotizava a assistência, que no meio do escuro, desaparecia por entre o fumo das mesas. Deviam ser quatro da manhã. «Para quê fazer contas?! Os números são horríveis, só servem para contabilizar dinheiro, mortos e feridos!»
O som do piano lembrava-lhe a melodia dos pingos da chuva que caíra na cidade. Parecia estar apaixonada, mas não era isso. Sentia-se forte e feliz como uma pedra. Um orgulho que se confundia com paixão, com uma alegria estranha... de estar viva...??
Tinha sido apanhada pela chuva. Uma chuva que ameaçava a cidade de Lisboa fazia dias. Uma chuva intensa e poderosa. Água e energia. Magia e realidade. As coisas parecem ter contornos mais reais quando estão molhadas, tem-se uma noção melhor do peso, da proporção, uma perspectiva diferente dos ângulos, das cores. Uma chuva mágica trouxera de volta o seu génio de fotógrafa, um génio que se arrebitara da cadeira pesada da redacção e fugira em direcção aos contrastes da cidade. Assumidamente doida, naquela terça-feira de Agosto, Tari, ou Rita, ou aquele génio sem nome, decidira invadir a privacidade da rua, brindar à tempestade que se abatia sobre Lisboa. Não havia vento, só água que caía do céu, como se Deus regasse o seu jardim de devassidão e porcaria. Como se a água que enviava à terra estivesse repleta de minerais mágicos que transformava as pessoas em seres livres, verdadeiros, abandonados de preconceitos. Numa palavra, loucos.
Pela primeira vez em anos, Tari era uma mulher que desafiava o mau humor da natureza e a má disposição dos homens. De novo, apaixonada pelo mundo que ela deixara de fotografar por falta de magia, de encantamento pela vida.
A esquina da rua, esburacada. Restos de pastilha elástica a desenharem um F. Um algeroz partido, a água que escorria pela parede. Nas pedras da calçada, um pequeno buraco em forma de coração. Uma sombra algures lembrando a figura de um polícia carrancudo, encostado a um caixote de lixo sujo e derretido. Mil imagens sem palavras, sem descrições. Realidades aparentes que não seriam senão pedaços da sua fantasia, da sua imaginação artística genial.
Sentada naquele banco almofadado, saboreando a sua bebida forte, observando-se a si própria, Tari recordava o princípio daquela noite, em que gargalhara no meio da rua, encharcando-se numa chuva que era só dela, abrindo os braços à fantasia, à estranheza da arte. Abrindo os braços a ela própria, sozinha, rodeada de uma vulgaridade especial, de uma realidade colorida a preto e branco, parada, dinâmica, no escuro de um silêncio ensurdecedor.



(Escrito em outubro de 1997 e publicado do DNJovem em novembro 2001)

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