História de um Super-Homem





«Nem tudo têm de ser rosas. Nem todas as palavras têm de ser as mais sábias e belas. Nem todos os sentimentos são transparentes e inequívocos.»
O chão parece mexer-se. É incerto onde colocar os pés com convicção e vontade de enfrentar a vida. Sorri, afinal, os sonhos foram estranhos e escuros, dormiu pouco e acordou cansado. Precisava de lavar a cara, de refrescar os olhos doridos do trabalho ao computador, das leituras até às duas da manhã para desencontrar-se com a insónia. Era isso, só tinha de meter-se debaixo de um banho quente, a ferver, e sair de lá como novo, libertando vapor e preocupações pelos poros; água e cansaço das pontas do cabelo.
Olhava-se ao espelho embaciado. Tinha medo de esfregar a sua imagem, de a descobrir, de encontrar um rosto sorridente e amigável, uns olhos prontos a rir ou a chorar, uma alma frágil e triste, apenas consolidada pelo peso da responsabilidade, da força que o invadia quando todos os dias tinha de enfrentar as pessoas com quem trabalhava.
Decidiu limpar o espelho, como sempre acabava por fazer. A sua barba crescia depressa, às vezes tinha vontade de a deixar crescer. Se ao menos fosse como o cabelo, que deixava crescer à vontade... até que se começava a irritar com os caracóis que se formariam em torno da sua testa, e aí acabava-se! Cortava-o bem curto, ficava-lhe mal, mas sentia-se óptimo, livre, pronto para esperar mais uns meses. Aquela barba, que remédio senão fazê-la todos os dias! E como nos últimos anos ele repetia sempre as mesmas operações, tudo o que fazia saía na perfeição, como um gesto mecânico, uma forma de dizer que não só aprendia depressa como aperfeiçoava todas as pequenas coisas do seu dia-a-dia.
 Tinha-se tornado um mestre, alguém que sabia mais do que os outros, porque fora forçado a aprender, porque mais ninguém se dera a esse trabalho. E era mestre nas palavras, nos ensinamentos. Tanto passara por ele a repetição das atitudes, das reacções, dos acontecimentos, das situações mais estranhas às mais normais, que se tornara, como por magia, num feiticeiro. Ele, estando rodeado de pessoas que deveriam tentar impor-se perante a sua autoridade, estava sozinho, por vezes numa dança meio louca em que ria e cantava às escondidas, no seu escritório, deliciando-se com o saboroso individualismo que era para ele, quase sempre, o maior prazer da sua vida. E era de novo criança, adolescente ou louco, porque não tinha muitos motivos para rir e cantar, e dançar às escondidas. Outras vezes, ficava parado, de olhos fechados, a ouvir as suas músicas preferidas. Refugiava-se nas mais profundas florestas do seu imaginário. Ouvia sons que não sabia serem humanos ou da natureza. Apagava a imagem da sua rotina e transportava-se para onde quer que desejasse. E viajava por todo o mundo.
 E, depois, acordava. Trabalhava, escrevia, lia, visitava os seus colegas, ajudava no que podia. E voava, adorava voar, desaparecer ao volante do seu automóvel. Estava constantemente a fazer alguma coisa, e essa era a grande vantagem da sua vida: não precisava de parar. Não gostava. Tinha confiança em si, na sua astúcia, na sua sempre pronta disposição para negociar, para fazer contas, para tratar de mil e uma coisas no mesmo dia. Onde estava a energia que precisava? Parte dela já tinha nascido consigo. A capacidade de trabalhar e de o fazer competentemente satisfazia-o e confortava-o porque tinha consciência que ela era a sua principal aliada.
Já tentara fazer amigos. Ele tinha amigos, mas do tipo de amigos aos quais nunca se pode confiar os segredos mais íntimos. Mas, teria ele segredos? Seriam aqueles desabafos esquisitos no escritório, os pensamentos evasivos enquanto ouvia música? Pensaria ele em jogos perversos, em pecados mortais, num crime, só para quebrar a monotonia e a solidão que ele criara à sua volta? Era nisso que pensava, e em muito mais...
A vida dele era como um livro, onde ele representava a sua própria personagem, com expressões, hábitos e tiques como os dele, mas nem por isso com um quotidiano ideal. E era também o narrador, e sobretudo o autor do livro. Tinha esse poder sobrenatural de se desprender da sua personagem e de se colocar de fora, lendo muito descontraidamente a sua história, analisando as falas dos outros, as suas próprias; antevendo o destino provável dos próximos capítulos. Compreendia que a vida era assim; era humilde porque apesar de ter consciência que detinha um poder imenso, nada fazia de anormal. Reagia sábia e pacientemente, adivinhando as respostas, os olhares, as reacções e tentava sempre remediar o que precisava de remédio.
Mas, era um homem trabalhador, atento às notícias do mundo, apreciador de música, de livros, de comidas, de futebol. Um homem com um trato tão fácil, que só lhe era inimigo quem o invejasse. Casado, ainda que não vivesse em permanente lua-de-mel, mas adorava a mulher. Era com ela que podia conversar sobre o trabalho, sobre os infortúnios ou sucessos dos seus dias. Era à mesa do jantar que sentia uma parte dele a descansar. Estava em casa, olhava a televisão, resmungando por entre dentes algum pormenor dos noticiários, comentando alguma passagem do dia que lhe viesse à ideia, por associação a algo que via ou ouvia na televisão. E tinha a sorte de ter uma mulher divertida e que entendia das coisas do seu trabalho.
Ao fim do dia, quando se deitava, sentia um cansaço doce e uma sensação de orgulho, de missão cumprida. Mas, não adormecia facilmente, logo lhe atacavam as preocupações do dia seguinte. Às vezes, levantava-se, vestia-se e ia para o escritório. Trabalhava com afinco, ou simplesmente adormecia a ouvir música no pequeno aparelho portátil. A noite era terrível, se era difícil acordar, era bem pior adormecer.
Todos os dias revia a história do seu livro. Analisava as personagens, os diálogos, as acções. Preparava o capítulo do dia seguinte, estudando-o até à exaustão, até cair de sono, sem defesas possíveis. E todos os dias, durante segundos, era levado pela tentação de mudar drasticamente o rumo da sua história. Todos os dias, embebido numa rotina que ele criara, e que ele podia alterar se quisesse, questionava se o devia fazer, se podia experimentar uma vida diferente, em que ele não fosse o mestre, o maestro, o homem normal mais genial daquele pequeno mundo...
Mas, estava tudo bem. Tudo tão ordenado. Para quê mudar a história de um livro em que as personagens levam uma vida regalada? Mas, como seria isso possível? Não, não podia ser, ele não era Deus, ou santo, ou rei, nem pai ele era! Como era possível passar os seus dias a organizar a vida de todos? Seria ilusão? Se ele não existisse, não poderiam aquelas pessoas tomar o seu lugar e aprender a fazer o que ele aprendeu? Não, que disparate! Ele fazia-o porque gostava de o fazer, porque tinha escolhido aquela forma de viver, porque lhe dava prazer, porque no fundo onde quer que ele estivesse ou a fazer o que quer que fosse, ele iria ser sempre assim.
 Não era um truque para se conformar. Há muito que se tinha conformado. Era uma forma de passar o tempo. Provavelmente, aquele homem genial que possuía o destino nas mãos, esperava ardentemente pelo dia em que esse destino se rebelasse e o confrontasse numa história de um outro livro.


(Escrito em setembro de 1999 e publicado no DNJovem em janeiro de 2002)

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