Kristina
Kristina
era uma menina de doze anos. A sua pele era um misto de sujidade e de sol. As
suas pequenas mas inchadas mãos denunciavam frio, aspereza e feridas pequeninas
que com o tempo se transformariam em cicatrizes. O seu cabelo, revolto e
entrançado num emaranhado de dias e de noites, lembrava-me o cabelo daquela
criança que em tempos eu vira dançar em Kabul. Não era Kristina o seu nome, era
Abdellah, mas ninguém parecia se importar se a menina tinha ou não um nome. Tal
como Kristina, Abdellah não passava de uma criança magra, pele queimada, olhos
húmidos e verdes que esperavam a esmola, a dádiva ao pobre, ao desgraçado pela
guerra, ao orfão. E Kristina abordou-me com seu olhar triste e determinado,
olhos vermelhos de terem chorado minutos antes, boca molhada e salivosa, lábios
bonitos, mas secos. Um olhar que parecia ainda reflectir não só o brilho
infernal de uma explosão, mas sobretudo as dificuldades amargas de uma viagem
arriscada, penosa, criminosa.
Esta
criança era apenas mais uma entre tantas sombras marginais das ruas e dos
recantos da cidade. Ela, seus pais, irmãos, tios, primos, avós. Gente sem
rosto, sem identidade portuguesa, apenas clandestinos do acaso, do fim da
linha. Viajantes sem tempo, sem espaço, perdidos no frio de uma Europa de
contrastes. Portugal era apenas um país de gente morena, hábitos pouco ricos.
Quem sabe, por que não?
Quando
perguntei a Kristina de onde vinha, respondeu-me «Bósnia», com os olhos
parados, lábios salientes, como se estivesse a falar numa língua que eu não
entenderia. Mas, sim, claro que ela sabia que eu entendia; aqueles olhos
tristes apenas completavam o sentimento de piedade que me despertava a palavra
«Bósnia»... mas, Kristina provocou em mim muito mais do que piedade, pena,
emoção. Ela recordou-me aquelas imagens que eu perdera no tempo, entre as
tempestades de areia e os penhascos rugosos de uma terra sem nome. E eu vi à
minha frente Abdellah, Shara, Aziza, Tulluh, entre tantas outras crianças
lançadas ao infortúnio da mão estendida, dos olhos molhados, das lembranças
terríveis da guerra.
Abdellah era orfã. Desde pequena que se habituara a sobreviver
sozinha. Doze anos. Um corpo frágil e estreito, olhos pestanudos e um cabelo
embaraçado por baixo do lenço. Lábios finos e uma voz rouca. Sons lamuriosos,
melodias onduladas fluíam de si, ecoando nos horizontes das estepes. Uma
pandeireta marcava-lhe o ritmo, uma pequenina e discreta dança, um talento
pouco promissor que conquistava caravaneiros e artesãos, reunidos em torno de
uma fogueira. Jovens e velhos, divertindo-se, chorando. Abdellah era mais do
que uma simples bandoleira, era uma actriz que reforçava a sua tristeza em
canções de miséria, a sua fé em cânticos islâmicos, o fervor guerreiro em nome
de Alá, em nome de um povo crente. Davam-lhe caldos de pão, frutas, roupas e
mantas. E ela, no fim, agasalhada e alimentada, sorria, piscava o olho a si
própria, e com os seus doze inocentes anos, percebia que o poder de despertar
piedade nos outros era uma dádiva de Deus. Chorar ou rir eram artes que tinha
aprendido a lapidar, porque elas aqueciam o coração de muita gente. Gente
acalentada pelo sonho muçulmano de um mundo justo e correcto, quando alimentado
pela fé, pela oração, pela devoção, pela dádiva.
Kristina
podia ter jogado comigo da mesma forma. Um jogo de verdades e mentiras, de
truques persuasivos, artimanhas. O espelho do sofrimento e da agonia de uma
família que dorme num carro velho, que pede esmola a quem não foi ensinado a
dar. Fosse como fosse, recordei o choro de Abdellah, profundo, rouco, doloroso,
lembrando a mãe morta, o pai que nunca conhecera. E conforme sorrira horas
antes com a barriga cheia, chorava depois por não ter quem a confortasse
durante a noite, quem lhe cantasse uma canção de embalar. E era ali mesmo, nas
pestanas molhadas de Kristina, que se encontrava o verdadeiro brilho da
tristeza, intemporal, consumindo-se numa esperança que aprendera a utilizar
para disfarçar as dificuldades.
As crueldades da História repetem-se, disse o vento do Leste.
Mais ninguém vê isso, hoje em dia. As pessoas vão-se adaptando ao horror, à
ruína, e por vezes, sorriem. A morte esconde-se na vida, as mulheres
refugiam-se nos panos largos, cobrindo a vergonha que aprenderam a sentir desde
o nascimento. Repetem «Não tenho nada, para além de Deus.», fogem e caem a dois
passos da fronteira. De que adianta chorar. De que adianta fugir. Por isso se
deixam ficar, mendigas, na esperança que um anjo as visite, as leve para o
paraíso, onde a água e o verde corram a paisagem, um calor agradável as faça
retirar o véu, sem medo, sem vergonha, porque o verdadeiro Deus aprecia o
sorriso das mulheres. É o sonho.
(escrito em fevereiro de 1998 e publicado em dezembro de 2001 no DNJovem)
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