Alma Perdida
Quando Raul e Patrícia chegaram do Brasil,
Lisboa pareceu-lhes uma cidade muito estranha. Ora suja, ora branca. Moderna,
mas antiga. Tiveram de descobrir quase tudo sozinhos, as ruas, o norte e o sul,
uma nova sonoridade linguística, hábitos enraizados, um céu diferente, mais
sujeito aos humores dos deuses europeus. Nos primeiros tempos, o casal de
músicos, que se desiludira com a falta de oportunidades na sua terra, caminhou
pelas colinas da cidade velha, percorreu as longas avenidas do centro urbano,
observou as pessoas, as suas fisionomias, escutou os seus diálogos, estudou o
seu comportamento, interrogou estátuas, edifícios e monumentos.
Vinham à procura de uma
alma, de uma essência que não fosse só a Bossa Nova ou o Samba dos seus
conterrâneos. Disfarçando-se de pessoas vulgares, emigrantes normalíssimos em
busca de um trabalho numa pastelaria, numa loja, Patrícia e Raúl apreciaram o
desafio da arte musical e entregaram-se ao estudo dessa alma que procuravam.
Encontraram inúmeros brasileiros, outros, descendentes, a quem perguntavam que
tal era Portugal, como iam as coisas, se estavam a gostar, o que pensavam dos
portugueses. Cada resposta compunha uma nota musical na pauta horizontal. Cada
opinião era um diferente instrumento que tocava mais forte, mais suave,
conforme a rispidez da experiência daquele brasileiro no país irmão. Esperavam,
assim, poder encontrar a harmonia perfeita para compor uma nova sinfonia. Um
novo som.
«Os portugueses estão
crescendo, com o tempo, com o progresso, com a exigência da concorrência, da
qualidade.»
Violinos, notas graves,
compassos de violência, de corrida, pés batendo em contraplacados.
«Já levei pancada e fui
assaltada, como em São Paulo; mas também já senti o carinho de muita gente que
me apoiou...»
Bombos, pratos, sons
metálicos a um ritmo desenfreado. Um compasso de silêncio. Uma flauta doce,
vagarosa, uma brisa.
«Essa gente é
contraditória ‘prá caramba! Primeiro, tão de cara amarrada, logo depois riem de
coisa que não tem piada!»
Instrumentos alternados,
trompetes, oboés, violoncelo! Humor! Riso! Alegria subindo o volume, mais
forte, mais fraco. Música de tempo que corre em filmes de aventuras para
crianças.
Descobrir a música de
Lisboa não seria com certeza descobrir a música portuguesa. As notas musicais
conjugadas de maneiras diferentes constroem melodias diversas; Lisboa tinha uma
sinfonia só dela, construída a partir de múltiplas outras sinfonias, e como
qualquer cidade, transpirava momentos de ternura e de flautas, outros de maior
violência e solidão, dos agudos rápidos do violino.
Patrícia passeava pelo
Rossio, observando as montras, as personagens caricatas da esquina com a Rua do
Carmo, perfurava o fumo das castanhas assadas, deixava-se encantar com os
enfeites de Natal, pendurados nas varandas dos prédios. Ainda não escurecera, o
comércio fervilhava, as pessoas quase se atropelavam nas ruas. Procurava uma
prenda para o marido. Tal como em Porto Alegre, no Brasil, o Natal era sempre a
mesma impaciência das prendas, das comidas, da confusão nas ruas. Como estavam
habituados ao frio do Sul, não estranharam as baixas temperaturas do Inverno
Lisboeta.
O vento e o frio
roçavam-lhe a cara com uma impertinência que a desafiava, mas não surpreendia.
Tentava reflectir apenas no que via à sua volta, enquadrar as personagens que
por ali passavam num bailado clássico por ela imaginado. E procurava entre o
aglomerado de bailarinos, os que se destacavam, que mereciam os papéis
principais. Parou na passadeira da Rua do Ouro, aguardando o semáforo abrir.
Subiria a Rua de São Nicolau, o Chiado, o Carmo e, enfim, a Trindade. Era um
bailado agradável, sustentado pela ondulação das colinas, dos Dós e dos Lás.
Ainda no Ouro, as pessoas
dançavam suavemente, sozinhas, em diferentes direcções. Homens de gravata,
adolescentes de mochila, senhoras de bengala. Quando o boneco verde surgiu,
Patrícia quase foi empurrada por um trombone de gente, que se escondia do frio
da cidade. E foi na contracção do movimento humano que, finalmente, se destacou
a personagem principal do seu bailado. Um homem de cabelo branco, atado em rabo-de-cavalo
com um lacinho preto, casaco apertado, elegante, um caminhar determinado, passos
largos e certos, soldadinho de chumbo, envergando uma saia escocesa pregada,
direita, abrindo em fole com a passada rápida. E logo a mancha dos restantes
bailarinos se esbateu, para dar lugar a um piano lento, acompanhando os passos
intemporais daquele homem de saia que dobrava a esquina da Rua do Ouro. Um solo
fantástico, arrebatador, no centro de uma pauta confusa, desencontrada. Uma
personagem setecentista, saída de um castelo de cartas, contornando as muralhas
da indiferença. Os secundários, esses, paravam, virados para ele, admirando a
sua ousadia, buscando significados, que não entendiam, no meio de sorrisos, de
troças.
Patrícia perseguiu o homem
da saia. Curiosamente, dirigia-se para o Carmo. Pôde assistir ao seu bailado
quase até ao fim. A personagem perdera-se para lá do quartel e ela imaginou
aquele soldadinho de chumbo, cansado, com pouca corda, chegando ao seu canto da
prateleira, de onde se escapara durante o dia. Um piano baixinho, parando...
A música terminara.
Patrícia sorriu e inspirou. O que tinha aquele homem a ver com Lisboa? Talvez
tanto quanto ela própria.
«Deve ser duro ser uma
estátua. Uma igreja. Uma pedra sem vida. E daí até é divertido observar os
outros dos ângulos mais privilegiados.»
Raul sentia-se ele próprio
observado, sentado na estátua do falecido Camões. Não sabia se pelo turista que
se sentara um degrau acima, se pelo próprio Camões. Sentara-se para descansar
os pés, a garganta, azeda pelo fumo do tabaco. Aquela Rua do Alecrim dava cabo
de qualquer um.
As pessoas floridas
passavam num reboliço relativamente calmo. Teve vontade de as fotografar por
escrito, de compor uma música primaveril, de se sentir um daqueles objectos de
pedra e observar de modo imponente aquela cidade que começava a descobrir aos
poucos. Olhou em redor. As caravelas e as ninfas jaziam sem cor, aos pés do
poeta. Uma criança de fraldas e brincos é forçada a engolir um gelado de
chocolate pela avó, que apenas pretende fazer com que a pequena desista do
pitéu para ser ela a comê-lo. O turista inconveniente continua a dez
centímetros de distância de Raul. Lê-lhe os pensamentos, observa os mesmo
artigos de decoração urbana que ele. Raul sente-se incomodado; o homem está a
roubar-lhe a originalidade da ideia. A avó devora o gelado da neta. Crianças
movimentam-se pela pedra-pedestal; aquela sombra é a única do Largo, três
escassos metros de abrigo que os mais relaxados aproveitam, para esconder a
pele dos ritmos apressados.
Raul era só mais um.
Combinara com Patrícia no Camões para depois descerem ao Cais do Sodré e
apanhar o combóio para Oeiras. Passaram-se já alguns meses desde que chegaram.
Lisboa ganhava cor com a Primavera, mas o vento levava para longe os acordes
musicais de uma viola fina. Era difícil definir a sonoridade de Lisboa, quanto
mais a conhecessem. Diziam as pessoas que Lisboa era o Fado, mas... será que se
poderia encontrá-lo pelas ruas?
Na sua contínua busca,
Patrícia e Raul encontraram mais perguntas do que respostas. Encontraram também
o Fado a cantarolar às janelas do Bairro Alto, de Alfama, da Bica. Mas, nem
todos os portugueses se identificavam com o fado lisboeta, não era, por assim
dizer, uma canção que caracterizasse todo o povo português, apenas a que
traduzia melhor uma alma herdada de um passado difícil, que os mais saudosistas
teimavam em não esquecer.
Quando o Verão chegou, as
músicas de ritmos latinos invadiram as rádios, a televisão, as lojas, as
praias. Nos bares e discotecas, o Brasil estava presente, o samba, a salsa. Num
dia de calor, o casal de músicos entregou-se à saudade, à alma, à raiz
cultural, e, em pleno Centro Comercial, imbuídos pelo som baiano que fruía dos
altifalantes, não resistiram aos pulinhos dos pés, aos requebres dos ombros, e
desataram a dançar como nunca tinham dançado. Outros se lhes juntaram,
portugueses, estrangeiros, sabiam dançar samba quase tão bem como os
brasileiros. Ao samba, vieram juntar-se africanos, alemães, japoneses de
máquina fotográfica aguçada.
«É impressionante...», comentou, mais tarde,
Patrícia. «Vimos de tão longe... para voltar a encontrar a nossa alma.»
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