À Procura do Milagre
As cartas quase faziam ricochete no tampo verde da
mesa. Um valente ás de copas deixou os restantes boquiabertos.
«És um batoteiro, Carlos, de onde é que tiraste esse
ás??!»
«Do baralho, ora essa...», disse, calmo e descontraído.
«É batota! É batota! Já saiu o ás de copas!»
«És um velho mentiroso, ó Pedro! Ora, vê lá!...»
Revolveram as cartas todas. Baralharam as que já
tinham saído em jogo, as que ainda não tinham saído e as que ainda seguravam
nas mãos. Foi um desalinho de cartas voando, escorregando nas pedras do
passeio, cabeças brancas inclinadas, chocando entre si, à procura do ás de
copas.
A sueca tinha sido interrompida. Os quatro velhos
retomaram as suas posições, resmungando e gesticulando com fervor, Fernando rindo-se
da confusão que Pedro gerara, António gritando com Carlos, e este último,
encolhendo os ombros de indiferença.
Santa Catarina era o refúgio daqueles quatro
ex-combatentes. Tinham combatido juntos, anos atrás, numa faculdade difícil de
completar. Agora, na faixa dos setenta, já mal se compreendiam, articulavam
frases inteiras com pouco sentido. Jogavam às cartas para se distraírem,
afinal, não tinham casado, não tinham mulheres resmungonas que lhes aturassem
as birras. E então, todos os dias se encontravam naquele tampo verde, com o
Tejo sobranceiro, a margem sul a dois metros, o mostrengo cada vez mais
de esguelha, tropeçando no verde seco da relva.
O jardim tinha ganho vida e desfalecido incontáveis
vezes ao longo das últimas décadas. Ora atormentado pelas bebedeiras e pelas
pedradas dos excedentes do Bairro Alto, ora abençoado pela harmonia de um bom
jardineiro, do civismo das pessoas, de uma ou duas reparações no cenário físico
do Jardim. Santa Catarina era a própria marca dos tempos a passar, o vento mais
forte, a brisa mais leve, o raio de sol mais intenso, o frio mais espesso. Era
a própria vida. O bebé passeando ao colo da ama; a menina a aprender a andar de
bicicleta; os adolescentes reunidos em torno de um tambor, de um rádio, de uma
velha bola de papel; o casal adulto que passeia de braços cruzados, apreciando
a vista, conversando uma ou duas confidências; os velhotes sentados, à sombra,
saboreando uma velhice incerta, um destino desprogramado, coisas ao acaso, que
a memória já atraiçoa. E naquele momento da batota, o Jardim de Santa Catarina
estava numa daquelas fases boas de civismo, harmonia e Primavera, dava gosto
passear e ficar, observando e aprendendo a magnífica arte de não fazer nada.
Os quatro
velhos não eram de Lisboa e só aos cinquenta e tal se deliciaram com os
prazeres dos passeios urbanos, de final de tarde. Teimavam em desprezar a
solidão, a velhice, as doenças que apareciam de repente sem que fossem para aí
chamadas. A tarde e más horas se decidiram jogar uma partida de alto risco,
contemplar as árvores do jardim no seu crescimento estático, os pássaros
chilreando, as crianças jogando à bola ou andando de bicicleta. Era esta a
forma de se sentirem ocupados, acompanhados, de procurarem um espaço que lhes
desse a tranquilidade que já não existia no mundo para lá daquele jardim. Um
miradoiro, um Alto, um ponto de referência no meio do caos, era o posto
de vigia mais que perfeito, de onde se avistavam tempestades imaginárias,
aventuras náuticas de um rio há muito esquecido, mulheres do antigamente,
que António, Pedro, Fernando e Carlos muitas vezes recordavam, lamentando não
terem podido abraçá-las como desejariam.
Fernando limpava os óculos com rigor, queixava-se
das lentes, já não eram aquelas meninas cristalinas que o ajudavam a decorar
datas, nomes e lugares, informações, livros, receitas médicas, velhos poemas
que escrevera aos infortúnios do tempo. Queria ver bem as cartas, sem que estas
tivessem manchas. E ria-se da sua tontice quando descobria que o mal não estava
nas cartas velhas, mas sim nos seus óculos cheios de dedadas. Carlos
aproveitava a sua fama de ingénuo, distraído e bonzinho, para adivinhar
o jogo de Fernando... era só olhar bem para os olhos do companheiro e adivinhava
de imediato, pelo reflexo das lentes brilhantes, quais eram as cartas mais
fortes que ele podia esperar. Pedro e António eram menos calmos, os mais
tagarelas. Passavam horas a berrar um com o outro. Pedro lembrava sempre com um
sorriso esgueirado os seus tempos de estudante, as caloiras que havia afilhado,
as cantorias da tuna académica, e essa era a sua recordação mais querida.
Passara muito tempo, a pele enrugara, os cabelos
esbranquiçaram, a tosse, o sono, a incontinência e a dependência de
medicamentos tomavam conta de quatro corpos que envelheciam todos os dias. Mas,
sempre que se encontravam às quatro da tarde para jogar à sueca e disparatar,
o corpo deixava de ter razão de ser e os quatro amigos viam-se a si próprios, e
uns aos outros, como se tivessem apenas vinte anos, de pernas firmes, rostos bonitos,
cabelos castanhos e fortes, sorrisos de juventude.
«Se ao menos tivéssemos jogado às cartas quando
éramos estudantes...», lamentou o Fernando. Os outros calaram-se ao comentário
do amigo, mas espreitaram a alma por segundos, sentindo que tudo teria sido bem
diferente se tivessem jogado às cartas de vez em quando, nos intervalos das
aulas.
«...Mas ainda jogámos aos matraquilhos, de vez em
quando, não foi?...», rematou Pedro. Todos menearam a cabeça. António jogou o
ás de espadas e arrematou a jogada.
«Ah! Lá está o cabrão!»
«Qual cabrão? Eu?!», exclamou António.
«Não, o cabrão do ás que andávamos à procura, ainda
há bocado!». Carlos coçava a cabeça, não se lembrava se tinha sido o ás de
espadas ou o ás de copas de que tinham andado à procura. «Bom, se não foi este,
então foi o de copas...»
«É verdade, que é feito desse gajo? Não passou por
aqui, pois não? Que é dele? Que é dele?» Fernando enervava-se, corava.
Cheirava-lhe outra vez a marosca. Onde estava o ás de copas, que ninguém lhe
pusera a vista em cima?
«Tenho eu aqui na mão!», respondeu prontamente
Pedro.
«Então, porque é que não o jogaste, meu palerma,
podíamos ter ganho!»
«Calma, calma, meus amigos! Por hoje já chega de
corações ao rubro! É melhor irmos embora, que está a começar a chover...»
António amenizou a situação. Arrumaram o baralho e
despediram-se. «Adeuzinho, até amanhã.»
A chuva tinha sido pretexto de velhos para acabar um
jogo infinito. No dia seguinte, já ninguém se lembraria daqueles
mal-entendidos, e tudo voltaria à ordem inicial, à sueca de todas as tardes.
O sol já descia mas ainda brilhava. A maior
contradição era esconder o corpo coberto de roupas pesadas por detrás de um
largo guarda-chuva que protegia do sol as senhoras donas Gisa, Mili e Ni.
Refugiavam-se numa sombra que, no fundo, não desejavam. Preferiam,
inconscientemente, apenas um chapéuzinho para tapar a cabeça dos raios fracos
de uma tarde de Primavera, mas o hábito de se esconderem por baixo de um
guarda-chuva generalizara-se de tal modo, que sempre que o sol espreitava,
corriam a sacar os velhos instrumentos de lazer e a fazerem-se acompanhar da
bela da bengala a caminho do Jardim, onde poderiam, com mais vagar, demorar-se
às conversas e ao sol, como lagartos.
«Pois é...»
«É verdade...»
«Isto hoje está muito mal...»
«Já nem se pode sair à rua...»
«É só buracos! Violência! Poucas vergonhas!»
«É tudo uma roubalheira, cruzes!»
«Tenho uma vizinha que é uma desavergonhada!»
«Ah, sim?!...», fizeram Ni e Mili, em uníssono.
«Sempre no corta! O estupor da mulher
farta-se de dizer mal do marido: Aquele ladrão nunca mais morre! Aquele
ladrão nunca mais morre!, que desgraçada, onde é que já se viu falar assim
do marido!?»
«Há pessoas que não sabem apreciar o que têm. Se ao
menos eu tivesse a minha saúde...»
«Por falar nisso, como vai a perna, já desinchou?»
«Qual quê, agora passou para a outra! Ando aqui que
não me aguento!...»
«Eu também não sei como é que estou aqui! Tive uma
crise de fígado tão grande, ontem à noite, que pensei que ia desta ‘pra
melhor!»
«Cruzes, credo!», replicaram as outras.
Dona Mili, dona Ni e dona Gisa eram amigas de outros
tempos de costura. Eram as três viúvas, reformadas e com uma barrigada de
filhos e netos que já perdiam a conta à criançada. Mili era a mais distraída, a
que se despedia mais cedo do encontro, tinha sempre afazeres, tarefas
domésticas, aquela sestazinha que não perdia por nada. Nas conversas,
perguntava e ouvia mais do que respondia ou falava. Ni era a mais arrebitada,
cheia de calores, de comentários mais polémicos. Era quem fazia rir as outras,
quem se dava ao trabalho de telefonar para fazer conversa, para perguntar como
iam as coisas. Era uma velhota simpática, com dotes de bairrista adormecidos,
hábitos práticos, rápidos e eficazes, mestra em organização. A sua vida eram os
netos, que os filhos só os via de vez em quando. Gisa tinha uma característica
fabulosa, o seu riso, uma tentativa frustrada de conter uma gargalhada
histérica e o resultado eram uns pequenos guinchos que soltava com a boca
fechada. Mas, quando não ria, amarrava a cara. Era pão pão, queijo queijo. Gisa
não precisava de agradar, era assim que se conhecia desde sempre. Ora dizia
mal, ora derretia-se de elogios, ora cochilava para não ter de participar em
conversas que não eram do seu agrado.
Naquela tarde, não havia muito que dizer. Gisa
desenhava o seu ponto-cruz, Ni saboreava a revista da T.V. e Mili distraía-se
com um cãozinho que lhe vinha lamber as mãos.
No centro do Jardim, uma adolescente escrevinhava e
observava como se pintasse uma paisagem. Não teria mais de dezasseis anos. Ouve
conversas, saboreia as vistas, sorri ao mundo.
«Aqui, deixo de ter identidade e passo à condição de
espia. Aqui, os problemas acabam e a vida torna-se bonita, simples e
confortável como uma brincadeira de criança. E leio um livro inteiro numa só
tarde ou em apenas duas horas. Andamos uma vida inteira à procura de um
milagre, e ele aqui. Quando vejo o mundo muito grande e cheio de cores e formas
que me atraem para dentro de si, tenho de fugir, de encontrar um cantinho onde
possa deixar de existir ou onde possa esquecer que o mundo é redondo e que tem
muitos milhões de anos para desvendar. Milhões de pessoas para descobrir.
Pessoas vulgares, como as que estão aqui, neste universo. E o meu papel não é
diferente do delas. Vejo-me de fora, e eu sou aquela que está sentada no
murinho, com uma perna por baixo da outra, a olhar para os que passam e a rir
das cenas mais vulgarmente fantásticas que acontecem aqui, em Santa Catarina.»
É
tarde. O sol esconde-se por trás da ponte sobre o Tejo e o friozinho raspa. As
velhotas despedem-se, vão para o fogão, para o calor das novelas. Os quatro
velhos já dormitam com a sopa à frente. A jovem parte. O tempo voou. Décadas se
passaram.
(escrito em setembro de 2001 e publicado em janeiro de 2002 no DNJovem)
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