Crónica do Mau Tempo
Foi num dia de chuva que tudo se esclareceu.
As cheias de Janeiro não tinham servido só para cercar Reguengos do Alviela ou
para estragar a campanha aparatosa dos candidatos à presidência da República.
Serviu para Alexandra entender de uma vez por todas que o poder da natureza tem
um efeito estranhíssimo na vida das pessoas.
Estava sozinha em casa com os seus animais
domésticos, o gato Juca e a cadela Diana, provavelmente devorando-se de tédios
e de saudades de um passado recente, onde tudo parecia bom. Nunca mais se
lamentaria da vida de estudante, era muito nova para se deixar consumir pelo
vazio, pela desocupação, enfim pela palavra feia e inconveniente desemprego...
E por isso tentava pensar positivo, rir-se da sua engraçada profissão de babysitter
de animais domésticos, concentrar-se em planos de ataque para cada dia, não
deixar esmorecer o seu ânimo de rapariga inteligente e divertida. «Meu Deus!»
pensava. E se fosse tudo uma enorme ilusão, e se lá fora fosse tudo muito
perigoso para a sua simples maneira de ver a vida? E dizia-se: «Ânimo, ânimo,
rapariga, amanhã sais de casa e arranjas trabalho!». Aliás, todos os dias
pensava o mesmo, mas o raio do tempo fazia-a sempre mudar de ideias...
Aquele dia estava particularmente tenebroso, o céu
grotescamente espesso e a escuridão entrava pela casa ameaçando Alexandra,
avisando-a, que tivesse cuidado... E mais uma vez, não saiu, com medo que a
placa de nuvens grossas lhe caísse em cima. Deixou-se ficar encostada ao vidro
da janela como se estivesse presa, condenada até a eternidade. A torrente de
chuva era tão forte que distorcia a realidade da sua rua. Imaginou os prédios
dissolvidos; os carros desmantelados; as pessoas refugiando-se nos intervalos
das gotas de água que escorriam pelo vidro. Eram tão pequeninas...
Trovejava. O céu ia cair, definitivamente. Era um
daqueles dias especiais em que o Mau Tempo se armaria em vilão e se
encarregaria de causar prejuízos de milhões aos portugueses mais
desafortunados. Em que as pessoas mais desprevenidas se encharcariam até aos
ossos para não correrem o risco de chegarem tarde aos empregos e compromissos.
A tempestade, essa, abatia-se no interior do tédio
de Alexandra. «Depois não digam que sou eu que não quero arranjar emprego!».
Na verdade,
ela não queria arranjar qualquer emprego, não tinha experiência em nada,
não percebia de computadores, não tinha jeito para vendas, não gostava de
trabalhos pesados, achava secante o serviço de um escritório, não tinha
paciência para crianças nem para aturar clientes armados em espertos. Tinha os
dezoito anos mais inexperientes do mundo! Passara a vida a observar os outros,
a criticá-los, a gozá-los, a vangloriar-se de ser diferente, que não precisava
de ser igual a toda a gente. Habituara-se aos tpc, aos horários completos do
Secundário, aos manuais de estudo com a papinha toda feita, e era uma maravilha
passar assim o tempo: fazia, porque alguém lhe mandava fazer, e o seu ofício
era obedecer e queixar-se da opressão. Detestava ser adolescente, mas teimava
em não ser adulta; queria ser artista. «Artista de quê?», perguntavam. A mãe
respondia por ela, com a voz torcida de ironia. «Artista de circo, claro, só
sabe fazer palhaçadas!». Mas, Alexandra não levava a mal, apesar de ser
preguiçosa e pouco activa, a sua melhor qualidade era a boa disposição, o seu
grande talento – e único – era fazer rir toda a gente. Mas, já não conseguia
divertir-se a si própria desde que aquela rotina enfadonha começara a destruir
o seu sentido de humor e a sua paciência de ouro. Por mais que procurasse nos
anúncios dos jornais, não pediam ninguém que soubesse fazer rir as pessoas.
Tentou cantar, mas a voz fugia com medo dos trovões.
Lembrou-se de ir brincar com o Juca, um excelente guarda-redes de bolas de
papel, mas a brincadeira não duraria muito com a entrada em cena de Diana, a
terrível, que, com os seus dentes afiados e ciumentos, filava, num segundo,
os papéis amarrotados em formato de bola. Abanava vigorosamente a sua cauda comprida
ao mesmo tempo que se afastava vitoriosa, com a presa na boca, para em seguida,
a poder despedaçar, deitada no seu tapete, regozijando-se da sua pequena
maldade. E o Juca, de temperamento alentejano, vendo que o jogo
terminara, recuava com a sua graciosidade felina e procurava novo posto para se
aninhar. Dormiria, decerto, nem que o céu lhe caísse em cima.
Alexandra não queria ver televisão. Enjoara os
programas da tarde nos primeiros dias de reclusão, não estava interessada em
ver novelas ou reality shows, não a faziam rir. Teve vontade de comer
queijo, como muitas vezes costumava ter. Assaltou o frigorífico com gula.
«Alguma coisa para fazer, por favor!» Lembrou-se de receitas apetitosas, mas
não tinha os ingredientes certos! «O queijo?! Onde está o queijo?!» E a luz
apagara-se no interior do electrodoméstico. «Terei mexido em algum botão?».
Quando retirou a cabeça da prateleira dos legumes, compreendeu que a casa
estava também ela às escuras. Um corte de energia vinha mesmo a calhar!
Esqueceu o queijo e pôs-se à procura de velas e de
fósforos. «Uau! Sempre posso fazer um ritual satânico!» Mas, nem isso ela sabia
fazer. Não havia problema, inventava... Até achou engraçado andar às cabeçadas
ao contador do gás e às apalpadelas pelas paredes, tropeçando na cadela ou
pisando o rabo do gato. Apesar de tudo, aquela imprevisibilidade era divertida,
desafiante. Quando encontrou uma vela, lembrou-se de ir ler em voz alta o
policial inglês que tinha sobre a secretária, mas duas páginas lidas depois
chegava à conclusão que não tinha percebido nada; a vela faiscava e o quarto,
escuro, era cenário de filmes de suspense, um jogo de penumbras e luzes
desgovernadas. Fartou-se e pousou de novo o livro. «Que seca!» Se tivesse ido
para a Faculdade, nada daquilo lhe estaria a acontecer.
Os animais ressonavam, não tinha luz, não podia
ouvir música, não se concentrava a ler, não havia queijo no frigorífico, não
tinha sono. Já conhecia bem de mais os contornos da sua casa, não se
surpreenderia com os pormenores. Eram apenas cinco da tarde, os outros só
chegariam por volta das sete.
O stress de não ter nada para fazer
enervou-a. Desejou ardentemente um «de repente!», mas nada acontecia. Voltou à
janela.
A chuva era agora um rio gigantesco pela rua abaixo.
A cidade estava carregada de nuvens escuras, baixas e gordas. Viu um
toxicodependente passar, sem guarda-chuva, à sua porta. Talvez a água o
purificasse um pouco, o limpasse da imundice da droga. Não, claro que não...
Ele estava muito provavelmente encharcado até à medula, e fulo da vida por se
sentir molhado e frio, quem sabe à espera de uma gripe medonha!
Aquele era o espírito prático de Alexandra, a cómoda
e preguiçosa Alexandra, mestre de piadas oportunas, detentora de uma poderosa
inteligência e de um terrível enfado perante uma sociedade que ela não conhecia
muito bem, nem tinha vontade de conhecer. Mas, sentiu-se de repente
muito cobarde, fraca, inactiva, gorda de mais, com um cabelo feio. Ia passar a
vida inteira a esconder-se do Mau Tempo, a adiar os seus compromissos, as suas
tentativas de arranjar emprego.
Sentiu-se desequilibrada. Perdida. Desorientada.
Sozinha. «Não, não vou chorar...». Mas, tinha de fazer algo, libertar-se
daquela culpa ridícula e espontânea que começara a sentir desde que olhara para
o exterior, para a possível futura constipação do drogado. Tinha-se sentido
inútil, burguesa, com feitio de riquinha...
Fechou os olhos e imaginou um fim para aquela
página. Quem sabe, umas frases irónicas, cómicas, como ela tão bem costumava
proferir.
Num movimento rápido e indolor, desapareceu pela
porta e desceu as escadas a correr. Esquecia as chaves, os animais, a carteira,
o guarda-chuva, o Mau Tempo... Lembrou a frase do Sócrates que tinha aprendido
no 10º ano: «Conhece-te a ti mesmo.» E resolveu, de uma só vez, conhecer-se.
Procurar, para além da comédia da sua vida, o drama, a seriedade, o toque seco
e molhado daquela chuva grossa e fria. E caminhou para o início da rua,
encharcando-se lentamente, como se estivesse um belo dia.
Iria em direcção à banca dos jornais; não tinha
dinheiro, ficava a dever. E procurou ali mesmo, um emprego. Num restaurante,
numa loja, num escritório. A tudo torcia o nariz. Nada. Colocou o jornal
molhado debaixo do braço e voltou para trás. Não tinha chave, não podia entrar.
Esperou, sentada no degrau da porta da rua do prédio em frente ao seu e olhou,
sem ver, os carros a passar. Fechou os olhos.
Quando os abriu, deparou-se de novo com a cabeça
junto ao vidro, a água a correr. Viu-se, lá do alto do seu 4º andar, sentada à
porta do prédio em frente. Tinha as pernas cruzadas, mãos soltas, olhar
perdido. Um jornal jazendo no seu colo, desfazendo-se.
«Que triste sou.»
Um ruído forte atrás de si acordara-a do seu transe
momentâneo. Era o pai que chegava mais cedo do trabalho. Batia com a porta.
«Porque é que está tudo às escuras?» perguntou. Alexandra respondia-lhe que
faltara a luz durante a tarde; possivelmente um corte de energia na rua, por
causa do temporal.
«Que estranho... Mas, há luz na escada!» murmurou o
pai. E com um gesto mágico, empurrou o velho interruptor para cima e olhou para
o lustre da sala, que se acendia viva e inesperadamente.
A electricidade tinha regressado havia já umas
horas, mas Alexandra não tinha reparado. O tempo passara estranhamente por ela,
mesmo não se tendo mexido. Inquiriu-se silenciosamente acerca do que se teria
passado. Onde teria estado. O que teria feito.
Espreitou pela janela, mas não se encontrou. Viu
folhas de jornal espalhadas pelo alcatrão, desfeitas pela chuva. E arrepiou-se;
não queria ser uma daquelas folhas, que se dilui com o Mau tempo.
Não tinha encontrado uma frase divertida para o
final daquela página. A ironia, que era uma constante sua, abateu-se-lhe
secamente. Era ela quem precisava agora de quem a fizesse rir.
(escrito em janeiro de 1996 e publicado em outubro de 2001 no DNJovem)
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