As Medalhas do Soldado José

Caminhava apressado em plena Rua Augusta, o coração batia frenético, a boca tremia-lhe e soltava suspiros de cansaço e nervosismo de segundos em segundos. Os pés grandes e desajeitados eram arrastados, varriam o empedrado de Lisboa com ritmo e vivacidade. Não podia correr, cairia decerto. Mas, chegar atrasado?! Jamais poderia conceber um atraso àquela aula! Como teria sido possível esquecer-se do trabalho em casa? Não, definitivamente, José não podia desapontar o professor, nunca dera motivos para o fazer. E lembrava-se de dez em dez minutos das ordens gritadas no tempo da guerra, das desafrontas, das gozações... Chegara a sua vez, agora, trinta anos depois, José ia fazer engolir todos aqueles gracejos sem a mínima piada, e ia demonstrar ao mundo, ou seja, à sua mãe, que ele, ainda que desajeitado, era um poço de inteligência, um verdadeiro génio devorador de livros e produtor de ideias brilhantes. E era por isso que se arriscava todos os dias a atravessar a estrada para apanhar o autocarro, a percorrer a Rua Augusta para apanhar o metro na Baixa-Chiado. E quando arrastava os seus pés pela plataforma do metro, envergando o casaco de estimação, coçado e velho, sentia um orgulho incomensurável, uma vaidade que lhe preenchia o mundo interior. E de dez em dez minutos, sempre que lhe assaltavam à ideia os gritos e os risos dos companheiros de Moçambique, ria consigo próprio, os seus olhos brilhavam e as suas mãos ondulavam, acompanhando gestualmente a sua conversação interior; e imaginava que os atirava, àqueles ordinários, para a linha do metro. E às vezes perdia o transporte, deliberadamente, apenas para o ver passar e poder imaginar aqueles corpos trucidados.
Mas, José não era maquiavélico. Ele jamais seria capaz de arquitectar planos de vingança. Na realidade, ele aprendera a lidar com esses sentimentos. Divertia-se, conversava infinitamente consigo próprio, gesticulando, abanando-se repetidamente, olhando para os lados consecutivamente, como se procurasse interlocutores meneando consoante concordassem ou não com o seu raciocínio.
E assim, aprendera. Construíra-se a si próprio a partir de uma autoestima indestrutível, teimosa e patologicamente indestrutível.
 Reformara-se cedo, o seu trabalho era monótono, maçador, formal e pouco estimulante. Adormecia muitas vezes a contar dinheiro, a conferir facturas, saldos bancários. Olhava as empregadas da limpeza, de manhã, antes dos outros funcionários chegarem, e tinha uma vontade irresistível de as ajudar, de lhes limpar os cinzeiros, despejar os cestos do lixo, limpar as secretárias. Era sobretudo um homem de muita fé, acreditava apenas em si próprio e por isso se arriscava a beliscar alguma dessas senhoras, de vez em quando. E quando elas eram muito descaradas, ou descaradamente carentes, deixavam que ele o fizesse.
Naquele dia, esquecera-se de fazer a barba, o cabelo espetado, oleoso, passado por um pente fino e sujo, e lá ia ele, a caminho do metro, com a pasta a balançar na ponta dos dedos, a cintura das calças ao nível do abdómen, a camisa dura e seca, muito engomada. Mais nervoso, irritado consigo próprio.
«Não posso fazer a desfeita ao professor, o que vai ele pensar de mim? Que sou um desleixado! Credo, Deus me valha! Tenho de ser rápido, tenho que chegar a horas para entregar o trabalho!»
Mas, na realidade, José não estaria particularmente atrasado. Ia chegar meia hora, três quartos de hora atrasado à aula, mas não era por isso que bufava, que transpirava violentamente com a ideia de ver a Faculdade no seu horizonte, correr para a aula, dizer «Cheguei!», com ar triunfante. Na verdade, o desejo de não desiludir o professor não era mais senão a teimosia de querer ser o primeiro a entregar o trabalho, enquanto os seus colegas, umas crianças, só estariam ainda a começar as pesquisas para o fazer.
E murmurava: «Por outro lado, se chegar tarde, a minha chegada vai chamar a atenção de todos, e vou poder entregar o trabalho nas mãos do professor, à frente de todos! De certeza que mais ninguém o terá feito ainda...». Sim, talvez o próprio docente o interpelasse em plena aula. Porque razão chegara tão tarde, que sentira a sua falta na mesa em frente. E rir-se-ia carinhosamente. Conhecia-o minimamente; sabia que ele era uma pessoa simpática, compreensiva, bastante acessível. «Que vitória!», pensava, ao sair do metro.
Passou por um cego que tocava acordeão e lançou-lhe uma moeda para a tigela, que este tinha no chão. «Coitado...», mas o seu acto caridoso não era reflexo da sua necessidade enquanto ser social activo, preocupado com os pedintes ou com os deficientes. Estava contente, sentia-se vitorioso, ia ser o primeiro a entregar o trabalho! Era uma pessoa inteligente e era através da sua inteligência e do seu trabalho académico que sentia finalmente uma superioridade legítima. Estava orgulhoso. Era melhor que os outros.
Ficava sempre na primeira fila, na sala de aula, e procurava o lugar em frente ao professor. Em certas salas, mais apertadas, isso significava uns sessenta ou setenta centímetros de distância do docente. Não tinha o hábito de passar apontamentos, e desprezava isso nos outros. Fazia questão de manter um bloco de folhas de linhas completamente intacto, em branco, aberto, com a capa descaindo para o vazio do fim da mesa. E não seria capaz de sobreviver a uma aula sem uma caneta. Ainda que não escrevesse uma única palavra, ele precisava da caneta para pensar, para participar oralmente na aula, para se socorrer dela, caso começasse a ter sono ou moleza, de tanto olhar directamente para a cara do professor. E por isso, também se distraía. Limpava o nariz, observava as mãos, os dedos, as unhas, brincava com a caneta, ou caía simplesmente numa conversação interior infinita, gesticulando, falando baixinho, rindo-se, mexendo-se na cadeira, olhando para os lados. E o momento mais espectacular para José, o momento, decorria quando aproveitava uma abertura no discurso do professor e tinha a oportunidade de falar. E falava, sempre sorrindo, a caneta girando no ar vezes sem conta, e quando estava perto de concluir, atirava-a firmemente para cima do seu bloco, e abria as palmas das mãos, encostando-as às extremidades da mesa. E olhava para os lados. Deixava de ouvir os outros, os professores, e ria-se. Ficava nervoso de contentamento, era quase sempre o primeiro e às vezes o único a falar. Era uma vitória em cada aula.
Oito e cinquenta. Nunca tinha chegado atrasado a uma aula. Aliás, se uma aula começasse às oito da manhã, às sete e quarenta ele já estava na Faculdade, arrastando seus pesados pés, assobiando baixinho, distribuindo sorrisos às paredes, ao chão recém-lavado, ao bar que abria sem clientes. E era um amor de pessoa, sorridente, bem-disposto, sempre pronto a deixar sair uma piada, um comentário irónico ao sujeito desconhecido que encontrava ao seu lado. E todas as palavras, todos os predicados eram motivos para se iniciar uma conversa. E assim que cativava a atenção do outro, era só falar, sorrindo nervosamente, referindo-se sempre a si próprio, às suas experiências, aos seus trabalhos, às suas capacidades. Travava monólogos intermináveis quando o seu interlocutor não tinha coragem de o deixar a falar sozinho. E por isso, chegava a detestar intimamente aqueles colegas seus, mais novos, que tinham coragem para o fazer, ou para lhe responder mal. Mas, escondia esse sentimento por baixo de um sorriso porreiraço, como se nada o afectasse. E ria-se, afinal, era muito melhor que todos eles.
Oito e cinquenta e oito. A porta da sala estava aberta. José tinha esperado poder abri-la triunfalmente, carregando no puxador com violência, para poder assustar toda a gente. Mas, a porta estava aberta. Não importava. Chegou-se à entrada da sala e estacou em sentido. Olhou; a sala estava quase vazia, apenas umas seis ou sete pessoas. Disse: «O Senhor Professor dá licença?», sorriu-se todo e entrou vitoriosamente com a pasta na ponta dos dedos. Retirou dela lenta e vagarosamente o precioso trabalho que tinha terminado naquela madrugada. Inclinou-se gentilmente com o trabalho estendido nas mãos, como se este fosse uma bandeja, e disse: «Aqui está!». Sentiu um aperto na garganta, um tremor no peito, e inchou quando o professor o felicitou, sorridente «Muito bem, muito bem!», e quase perdeu a força nas pernas quando o seu interlocutor lhe confessou que já tinha dado pela sua falta.
Sentou-se. Retirou o seu bloco em branco, a sua estimada caneta e iniciou a sua marcha de aluno atento. Ouvindo, olhando os gestos do professor, observando seus papéis, as suas canetas, os seus óculos. Procurou refúgios, não encontrou interesse algum na conversa do professor, que se expressava por gestos rápidos e fortes, empurrando pastas, alinhando papéis, virando páginas, abrindo capas de trabalhos. De trabalhos!?... Mas, havia mais do que um?! O dele não tinha sido o primeiro?
Inclinou-se. Procurou ver com algum esforço se a encadernação por baixo do seu trabalho não seria antes um qualquer documento do professor, um trabalho de uma outra disciplina. Mas, não. Reconheceu-lhe a capa, era efectivamente o trabalho de uma colega sua. Tinha chegado a tempo, e ele não. Ficou triste, desconsolado, perdeu a atenção à aula e baixou os olhos. Não tinha conseguido. Se ao menos não se tivesse esquecido do trabalho em casa, ele já estaria lá, às vinte para as oito, tal como tinha estado naquela manhã. «Que azar, que azar!», sentado a um quarto para as oito, beberricando o seu café, orgulhoso das duas horas de sono, e quando abriu a pasta para contemplar a sua obra-prima, quase desmaiou, perdeu a cor, tremeu de pânico. Tinha-o deixado em casa.
No final do dia, José estava ainda desiludido consigo próprio. Quando isso acontecia, tinha alucinações mais frequentemente; ouvia o riso do escárnio dos velhos colegas da tropa, o desdém dos novos da Faculdade. E nesse dia, ao voltar para casa, aguardando na plataforma do metro, ele viu-se a si próprio, estendido nos carris, sentindo o aproximar do combóio.
Do alto, estava ele, José, corpo descaído, olhar triste e amargo, mirando-se a si próprio, numa réstia de homem que ele não desejava ser.  
(escrito em 2001 e publicado no DNJovem em março de 2002)

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