O Violinista
Vivaldi
ribombava pelo quarto, em altos acordes lamuriosos. O violino quase quebrava os
vidros toscos das janelinhas brancas. Gonçalo cofiava o bigode com porte de
rico, ao jeito queirosiano. Perdera-se na imaginação de um sofrimento raro, apoteótico.
Desesperara, chorando-se, rindo-se, com a intensidade dos volteados da música,
forte e incisiva. Esfregara-se pelas paredes nuas, como que a dizer-lhes que
eram suas, que teriam de se habituar a ele, aos seus devaneios, à sua suave
loucura. O vento ouvia-se com violência no intervalo das faixas do disco. Era
um domingo frio como uma pedra, a cheirar ao inverno verde do norte.
Nada
voltaria ao seu lugar, agora. Refugiado, exilado, fugitivo, Gonçalo era a
sombra do que tinha sido em tempos, nos sonhos dos tios, dos pais, dos mestres
que o queriam doutor das leis. De ascendência nobre, tectos dourados, porcelana
da China, queria apenas fugir para Veneza, deleitar-se na Ponte dos Suspiros,
partilhar as migalhas com os pombos cinzentos de São Marco. Fugir, fugir. «Pró
diabo com tudo isso!». Deixava-se ficar, recostado numa antiga chaise longue,
devorando livros de autores oitocentistas, deliciando-se com os romances
impossíveis, as tragédias, a ironia sagaz dos realistas. O passar das épocas,
os floreados, os frufrus dos vestidos de seda, as casacas e as
sobrecasacas dos cavalheiros, os desaires dos mais ricos, a luxúria dos demais.
Recordava-se farto de tudo, de todos, da bonomia do campo, do branco da neve,
da capital enganosa, da obrigação de estudar, de trabalhar, de conhecer gente,
raparigas, pessoas influentes. Fidalgo de quê? De um dinheiro que não tinha, de
uma chaise longue rota.
Sentia-se
um transeunte ocasional de um tempo desgraçado, amordaçado, em que mesmo os
livres não conheciam o sabor da liberdade. Gonçalo não queria esperar pela
velhice. Não queria ser conhecido como o fidalgo que cumpriu as ordens da
tradição e que acabou estirado no chão, com uma mão ao peito, a outra babada, a
cara contorcida com um frémito de agonia. Via-o tão claramente como o futuro
que adivinhava nas personagens que lia. Queria ser Valjean dos Miseráveis,
desaparecer daquele corpo preso e transfigurar-se em herói, numa personagem
sublime, digna do furor da história. Queria mandar ao inferno a família, o
governo, a monarquia clandestina. Olhava as suas mãos, delicadas, gentis,
violentas, mas doces, e fingia tocar, com o arco em riste, sentindo a vibração
das cordas junto ao ouvido, numa saudade incontornável.
O desespero
tomava-o de novo de forma cruel. Já não sabia se era apenas um romântico, um
jovem sonhador com fantasias amargas e impossíveis, ou se na verdade, não
tinham passado décadas desde a última vez que tocara, tendo-se ele transformado
num velho louco, refugiado num cubículo em ruína, numa terra perdida no mapa.
Adormecia, sonhando com os bailes de Viena, os
passeios solenes pelos bosques de Bolonha. Via bochechas vermelhas
sorrindo-lhe, moçoilas despenteadas conduzindo-o para a alcova. Cavalos
relinchando, solos de tenores em salões de canto, damas inertes de gordura e
ignorância. Via-se um jovem e brilhante músico, poeta, por vezes pintor, quando
convencia as senhoras a posarem para ele. Via-se a fugir de terra em terra, com
o seu violino ao ombro, o sorriso de saltimbanco inconsequente, a pavonear-se
entre as ruínas de Roma, as estátuas de Florença, as damas de Paris. Sempre
levando consigo a música, Vivaldi, Verdi, Mozart, Rossini. Às vezes batia
palmas na rua aos comediantes que contavam anedotas, a última da família real.
E depois? Acordava. Passava os olhos por água, espreitava o reflexo no espelho,
via-se distorcido, com cabelos curtos e roupas do século XX. Assomava-se à
janela, com medo do abismo, como quem lê um jornal para saber as notícias.
Todos os dias via partir mais meia dúzia de homens, com uns sacos maltrapilhos
às costas, correndo para a morte, para as trincheiras de França. E todos os
dias pensava em juntar-se a eles, disfarçado de povo, do saltimbanco que
desejava ser e não era, «tocava-lhes todas as noites para adormecerem»,
fantasiava.
Mas não, a
guerra não era um sonho, era uma aventura demoníaca, comandada por homens
enfardados, cheios de bigodes ressequidos, cabelos divididos ao meio, lunetas
embaciadas. Para quê sujeitar-se? E via nesses generais a imagem de seus
familiares, igualmente ressequidos, empertigados, vomitando ordens e desmandos.
E fechava as cortinas, devolvendo-se, em mais um dia, à sua habitual amargura.
Encolhia-se ao canto, junto à mesinha onde repousava o gramofone, ainda
desligado, e fitava o vazio da carpete suja. Não tinha coragem de se levantar,
de pegar no violino e tocar freneticamente. Tinha demasiada percepção de quão
desapaixonada era a vida lá fora. A vida lá dentro. Os deuses tinham-no
abandonado no seu momento de vingança, na sua fuga deliciosa, no seu refúgio
demente. Na sua renúncia ao nome, à existência, ao pouco dinheiro, à humilhação
de ser uma herança de um passado nobiliárquico num país recentemente
republicano. Estava-se nas tintas para o sangue, para a raça, para o país.
Estava louco de tanto esperar, de tanto se
esfregar nas suas paredes, todos os dias, para que estas ganhassem vida e lhe
pudessem contar histórias incríveis de uma beleza sobrenatural ou de um pânico
merecedor de morte. Mas nada acontecia. Era a maldita e sublime esperança que o
acalentava, que o matava lentamente, sorrindo-lhe com escárnio na face. Fugir,
para quê? Para onde? De que adiantava? O mundo estava em guerra. Só os generais
ouviam músicas nas grafonolas de campanha. Não iria tocar para eles,
certamente. Tocaria com paixão e exuberância para o czar da Rússia, se este lhe
prometesse um salão cheio de gente resplandecente, amante da música, da arte,
da dança, dos perfis belos das mulheres adúlteras.
Lembrava remotamente os semblantes esfumados
do pai e da mãe, fuzilados à queima-roupa. Ele, que já tinha corpo de
homenzinho, chorando, pedindo o colo materno a um tio severo e hostil. Lembrava
o primeiro baile a que assistira, num modesto solar dos arredores do Porto. Uma
figura triste, loura, de olhos espevitados nos decotes das damas, afugentando o
fumo do tabaco dos cavalheiros, engasgando-se com os acepipes de presunto seco.
Delirou quando lhe pediram um pequeno solo. Era jovem, pensou. Uma criança,
quando tocou para mais do que três pessoas. Corado até às orelhas, um calor inebriante
invadindo-o a cada gesto forte, deixava-se improvisar por vezes, irritando a
mãe que lhe ensinara as partituras com requintes de malvadez. Era congratulado;
as raparigas sorriam-lhe timidamente, sem lhe dirigir a palavra. Os homens
davam-lhe pancadinhas nos ombros «muito bem, muito bem», diziam. As senhoras
respeitosas tocavam-lhe com a ponta do leque delicadamente nos cabelos,
beliscavam-no, mordiscando o lábio, adivinhando que talvez daí a uns anos, já
estaria apto a experimentar os prazeres sub-reptícios da carne, escondido por
trás das portas.
E cresceu.
Ao som de um poderoso instrumento musical, conferindo-lhe poderes mágicos, e
este atribuindo-lhe a ele a personalidade genial de um homem que estava pronto
a fazer história. A saltar para a ribalta da Europa como representante digno do
estandarte da família. O novo século? Era o quê? «Uma continuação do antigo,
ora...», explicava taxativamente o pai, com o fervor cego de um monárquico
pouco esclarecido.
As contas
chegavam, os devedores batiam à porta, os trabalhadores da terra vinham exigir
isto e aquilo. Lisboa é que era, terra gentil de costumes civilizados,
habituada ao poder dos que mandam. E foram. Arrastados pelo medo, de partir, de
chegar. Lisboa era um reboliço de galegos, saloios, espanholas e gente endividada.
Cheia de trapaceiros, agiotas, republicanos assumidos, polícias corruptos,
letrados bêbados e lixo por todo o lado. E Gonçalo adorou tudo aquilo.
Perdeu-se de amores pela imundície, pelas calvas reluzentes dos senhores de
charuto, pelas dançarinas descalças, pelo cheiro a vida. A família decaiu,
envolta em desgosto e dívidas. Os pais, arrependidos do gesto de loucura, não
podiam voltar para o norte.
Gonçalo
assistiu às óperas no São Carlos, escondido do contra-regra. Tagarelava com os
cantores, os poetas de chinelo, mostrava-lhes a sua magia musical, cantava
trechos de operetas, galanteava toda a gente. Ganhou ao palco e ao bastidor um
amor tremendo, uma dependência febril. Entregou-se ao teatro quase de graça,
esperando em volta a paixão carnal que os aplausos lhe devolviam. A revolta
veio, sem que tivesse dado conta. Mataram o rei, o seu pai e a sua mãe, e ele
mal se mexeu. Desfizera-se num vale de lágrimas invisíveis durante um concerto,
transportando a memória dos pais para um paraíso guardado entre as cordas do
seu violino. Recordava-os, gemendo baixinho, num misto de orgulho por estar
sozinho e de uma saudade irremediável, que o acompanharia para o resto dos seus
dias. E tocava, ainda que mentalmente.
A compaixão
dos tios, católica, crente numa vingança histórica rápida e indolor, amparara-o
por uns tempos. Deixar a música para os serões, onde podia acompanhar a prima
Josefina ao piano, meter-se aos estudos, procurar garantias para o tempo que lá
vinha, casar bem, fingir-se republicano temporariamente, imiscuir-se nas
reuniões dos políticos, quem sabe conspirar pela causa monárquica. Gonçalo,
ainda dormente com a morte dos pais, viu-se nos bancos da universidade,
cumprindo as ordens do tio, adormecendo na cadeira, embalando-se ao som de uma
melodia que construía com as sílabas fugazes dos doutores das leis. Procurou
aconchego em mulheres desconhecidas, com riso fácil e estridente. Pintava-lhes
os retratos, cómicos, brejeiros, onde lhes fazia sobressair os seios fartos, e
elas adoravam, pagavam-lhe da melhor maneira que sabiam. Com beijos secos no
pescoço, carícias apertadas que o confortavam apenas por uma noite.
Os anos
fugiram e Gonçalo viu-se doutor, engravatado, de cabelo lustroso, passeando-se
na alta roda lisboeta, frequentando camas mais ricas e opulentas. Os dedos
tinham ganho a experiência das assinaturas, dos despachos, e os ombros tinham
enferrujado, as articulações emperrado. O violino esquecia-se a um canto, como
um bibelot decorativo, marca de um passado de fidalguia que, por aqueles
tempos, no seio da sociedade, era tão chique como ter pendurado por cima da
lareira uma cabeça embalsamada de um qualquer animal feroz.
Rebentou a
guerra. O mundo que tinha começado a abrir-se para si, fechava-se de novo. As
notícias são graves, desoladoras, nascem sentimentos patrióticos, formulam-se
desejos secretos de simpatias e alianças. Sobem os impostos, cobram-se mundos e
fundos, decide-se mais tarde que o país entrará em guerra. Que os homens
portugueses estão à altura dos ingleses, dos franceses, que podem lutar como
qualquer povo. Mas desta vez não seria uma luta com laranjas e tirinhos
disparados por detrás de uns montículos de terra. A América entra, tardiamente,
num conflito que lhe é estranho. Os serões já são dominados pela leitura de
jornais, de folhetins, de prosas deste e daquele, um contra, outro a favor. A
guerra começa entre os portugueses. Os amigos que juntos fumavam charuto
digladiam-se, ofendem-se, viram costas. As mulheres choram os homens que hão de
partir e outras choram porque não há meio deles partirem.
Gonçalo
vê-se debruçado num mundo que não entende, onde a política domina tudo, até os
detritos que Eduarda, a criada, joga na sarjeta. Perde clientes, amigos,
familiares. Uns julgam que é traidor, outros, que é mole, imparcial, maricas,
sem opinião própria.
Numa noite
de euforia, copos, cigarros e mulheres da vida, da sua opaca e cinzenta vida,
retoma o velho sonho de fugir, de partir com o seu violino à descoberta de
novas emoções. Num repente louco, empacota alguns pertences de casa dos tios,
guarda numa caixa todo o dinheiro que encontra, enrola-se num sobretudo pesado
e retira da parede o seu velho amigo de cordas, deixando em seu lugar a marca
escura do tempo fluido. Embarca às portas do Tejo na maior aventura da sua
vida. Voltar para o norte, procurar um solar abandonado, dedicar-se à sua
história, escrever, pintar, tocar, mandar os códigos de conduta para o diabo!
Viajaria daí para Espanha, daí para Inglaterra, França, Áustria, Alemanha,
Itália. Esperaria, claro, pelo fim da guerra, isolado e escondido, pensando,
restaurando-se a si próprio, fazendo as pazes com o seu violino e com os pais
que descansavam no pó das cordas.
O regresso
foi difícil, mas temerário. Ninguém deveria reconhecê-lo, nem os velhos e
poeirentos fidalgos que subsistiam, coçando os piolhos, às janelas dos quartos.
Entrou de manso, à socapa, no meio da noite, procurando às apalpadelas a porta
dos fundos da sua antiga e abandonada casa. Cheirava-lhe a queimado, mas não
entendia a razão. Ao outro dia, de manhã, vira-se a céu aberto, no meio de uma
cozinha totalmente destruída. As paredes pretas das labaredas, os reposteiros
feitos em pedaços. O salão saqueado, o soalho partido, os vidros estilhaçados,
o telhado em metade. Olhou com demência um retrato de família, meio incendiado,
amarelecido, junto aos destroços.
Ouviu um eco de violino pela ruína da casa.
Sentiu alguém cercá-lo. Era ele, pequeno, louro, corado até às orelhas,
espremendo música das cordas com o arco. Tinha as meias rotas, a casaca suja,
descosida, o cabelo empoeirado. Passou por ele, tocando, levemente,
desaparecendo no raio de sol que furava o tecto.
Desde esse
dia, vagueara, perdido, ao acaso, como se mais nada importasse. Congeminou
breves planos de esperança, tentou animar-se, dizer-se a si próprio que não
tinha vindo de tão longe para nada.
Encontrou-se
numa pequena vila, perto da cidade do Porto, onde as pessoas não tinham
expressão, não queriam saber quem ele era. Porventura mais um desgraçado
desertor disfarçado de louco, de vagabundo. Tomou um pequeno prédio num cortiço
abandonado, com vista para a estrada, o Porto ao fundo, as mulheres vindas do
rio, passando com as trouxas de roupa. E ficou-se, esperando pelo fim da
guerra.
Com os
dias, aprendeu a viver com o pouco que tinha. Deslocava-se por vezes a uma
feira de velharias no Porto, onde comprava livros, discos usados, um precioso
gramofone que lhe custara duas semanas de alimentos. Móveis do século passado,
meio partidos, com os tecidos desbotados. E tudo levava para o seu refúgio,
onde esperaria romanticamente pelo fim da guerra. Pelo sinal de que podia
partir com o seu violino.
E foi assim
que Gonçalo envelheceu em apenas uns meses, delirando com as aventuras que
ainda iria viver, misturando os tempos, as épocas, deliciando-se com os
romances de Eça, de Flaubert, de Hugo. Voltara a usar o seu magnífico bigode,
um bigode digno das mais belas cortes europeias. E punha-se a cofiá-lo
longamente, sentindo-se um actor que interpreta um homem rico e importante.
Ouvindo Vivaldi, acariciando o violino, chorando, rindo, esfregando-se nas
paredes. Esperando.
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