O Assalto
A luz do candeeiro público é tudo o que
ilumina a minha razão. Ouço ao longe o bater irritante dos caixotes de lixo
naqueles carros verdes que passam, anónimos, todas as madrugadas pelas ruas dos
pobres e dos ricos. Sinto um aperto maquinal na garganta, uma onda de suor
gélido pelo corpo. Uma sensação de pânico e maldade que se torna inevitável
sentir. Quero redimir-me, arrepender-me, castigar-me. Ainda vou a tempo... mas,
não posso desistir! Só a imagem do Vasco nos meus olhos me convence a ir em
frente, a completar esta maluquice agridoce.
Como sou eu capaz de voltar ao mundo da ladroagem,
da aldrabice?! Como sou eu capaz de sacrificar a minha liberdade em nome de uma
chantagem, de um acordo estúpido e perigoso baseado no amor e na traição?
Vasco, espero que me perdoes, que entendas as causas que me levaram a entrar
num jogo sujo só para te ver vivo, só para ficares comigo para sempre...
A malta do Gil é sacana! Quando sair da cadeia,
hei-de sacrificar de novo as minhas asas azuis só para os ver na forca! E não
há-de ser por ti, Vasco, mas por mim e pelas minhas asas azuis... Tudo mais é
sombra, pecado, crime, ignorância e infantilidade perigosamente adulta. Não
tenho saudades deste escuro. Há muito que deixei de sobreviver apenas,
só por gozo ou necessidade, tu deste-me essa vida, com risos e melodias
alegres. Não me devolveste a razão, simplesmente deste-ma a conhecer.
E agora? Estou com medo, Vasco. Será melhor chamar a
polícia? Denuncio-os e vou à tua procura? Mas, se o fizer, não estarei eu a
arriscar o teu pescoço? Afinal, é apenas um pequeno assalto. Uma casa fechada
durante as férias dos donos... Costumava ser tão fácil! Agora sinto o gume
cortante da guilhotina que paira sobre os meus olhos... não, não posso fazer isto,
não posso!! Não quero!
Fujo, corro, desapareço com a rapidez do meu pânico.
Não penso, nem grito, nem choro. Fujo. Os pés tropeçam em pedras imaginárias e
os meus ouvidos escutam sirenes de carros da polícia que não existem. Voo
contra postes e esquinas e caixotes do lixo, que estão no meu caminho. Mas, o
vento é terrível; empurra-me para trás, para o passado, para o crime, para o
medo, para as dezenas de assaltos que cometi antes. Para aquilo de que fujo: O
assalto. O Vasco. O Gil. A Polícia. Quem eu costumava ser.
Paro, cansada e dorida. Os meus olhos estão exaustos
e quebrados. Querem chorar, mas não têm força. A minha boca engasga-se com a
secura e com a sede, e os ouvidos explodem com o ritmo frenético do meu
coração.
Grito «Deixem-me viver!», grito de novo «Deixem-me
viver!». Caio, louca, no passeio. Sozinha, acompanhada de mil fantasmas, de mil
recordações que eu não quero recordar. Mil barras de ferro e um sol aos
quadrados. «Vasco... Vasco... amo-te tanto...», choro, perdida de lamentações,
de fraquezas, mas lembro-me. Lembro-me daquele amor delicioso, do meu delírio
saudável por aquele homem que me salvara do abismo. Fecho os olhos e imagino
que a noite terminou com aquela imagem aterrorizadora do medo, e num instante,
o sol nasce cor de laranja e sorridente e se eleva no mais perfeito dos azuis.
Ele aparece com os seus cabelos ondulados e sorri para mim. E tudo é bom e
bonito, e tudo é como deve ser. A felicidade... a pior mentira do mundo.
Abro os olhos e vejo o vulto do demónio. As formas
odiosas do meu maior inimigo. O Gil.
«O que se passa, Leonor, estás a rezar?!»
Quero cuspir-lhe em cima, esmagá-lo a ele e à sua
ironia do diabo. Destruir-lhe as partes que ele mais preza no corpo.
Esburacá-lo com a mesma faca que ameaça o meu Vasco. Mas, em vez disso,
imploro-lhe que nos deixe em paz, que me devolva o homem que amo, que não me
obrigue a voltar para o mundo do crime. Choro, finjo ainda gostar dele,
mostro-lhe o desespero. Ele diz «Vamos! Faz-se tarde!». Agarra-me pelos cabelos
e puxa o meu corpo inútil como se eu fosse um trapo. Não posso gritar, a imagem
do meu amor, despedaçada, atafulha a minha garganta de dor.
Levanto-me, atrapalhada, ainda a tropeçar nos
próprios pés. Engasgo-me com a saliva. Tenho que o seguir. Tenho que o ajudar a
assaltar aquela casa. Tenho que salvar o Vasco...
«Anda, despacha-te! Começo a não acreditar nesse teu
amor por aquele idiota!» O sangue ferve-me. Apetece-me matá-lo aqui mesmo.
Apenas, matá-lo.
«Como é que sei que o libertas?»
«Não te preocupes,
se cumprires o trato, ele aparece-te à frente...»
«Onde está ele?»
«Confia em mim...»
E sorri, o cabrão! Ainda tem a coragem de me
desafiar a este ponto.
Entramos numa viela estreita e sem luz. O resto da
quadrilha espera-nos, junto de um carro. «Vamos a isto?» pergunta ele. Os
outros sorriem com prazer. Eu choro por dentro.
A casa é no primeiro andar. Passamos por uma porta
partida, consertada com papelão. A minha tarefa é a mesma de sempre: arrombar a
porta. Por isso, me chamavam a Leonor das Gazuas, mestre das ferramentas
e dos arrombamentos. O resto do pessoal dispersa-se pelas esquinas. O Tó devora
cigarros ao volante da carrinha, como de costume. A Zeza e o Rui vigiam
janelas, passagens, possíveis testemunhas.
A porta é forte, mas as dobradiças estão velhas. Não
é preciso muito tempo para a abrir. Evito que o Gil utilize a força. E a porta
abre-se.
O foco da lanterna corre apressado pela casa à
procura de objectos de valor, de brilhos ofuscantes. Manda-me ir à cozinha
procurar pratas, pequenos aparelhos electrodomésticos. No entanto, tento não
procurar nada.
Acho finalmente a razão do assalto, no corredor, em
cima de uma mesinha! Uma moldura com a fotografia do Vasco com os seus pais! De
uma maneira ou de outra, o Gil queria destruir-me! Se recusasse fazer o assalto,
ele matava-o. Se o fizesse, haveria de arranjar maneira de o Vasco ficar a
saber que tinha sido eu a assaltar a casa dos pais. Denunciar-me-ia depois e eu
ia parar à cadeia, enquanto o Vasco me viraria as costas! E o Gil rir-se-ia de
mim e do meu sofrimento para sempre, e assim se cumpriria a sua profecia...
«Quem trai não pode viver a sorrir, mas a sofrer.» Ele quer sugar-me a vida
pelo crime que cometi contra a honra dele. Traí-o, e agora tenho que engolir
essa traição, esse orgulho com que lhe disse que amava outro homem, e que esse
homem seria o único por quem eu faria sacrifícios.
...Será que sabes, Vasco, o sacrifício desta noite,
desta vida? Será que percebes a loucura e a estupidez deste imbecil caprichoso
que não sabe o que é o amor? Diz-me o que fazer... Diz-me onde estás para te ir
buscar... Provavelmente, estás em casa, sem saber de nada. Aquela tua carteira
podia não ser uma prova do teu rapto, mas de um simples assalto na rua… Oh, que
estúpida! Porque é que não pensei nisso antes? Estava tão cega de incerteza que
me esqueci de pensar no óbvio!
Mais uma vez, não tenho tempo para pensar. Ajo.
Corro atrás desse Gil que espreita atrás de um quadro e surpreendo-o com o peso
de uma panela de pressão na nuca. Bato-lhe na cabeça, nos dentes, no peito! Ele
desmaia e rebola pelo chão, sem sentidos. O saco dos objectos roubados cai,
abre-se. Sinto prazer de o ter aos meus pés e esmago-lhe as partes com a
biqueira das botas da tropa, que ele mesmo me ofereceu. Ignoro se está vivo, se
está morto. Bem feito, em qualquer dos casos!
Corro, no meio do escuro, para a casa-de-banho. Há
lá uma janela que se abre para um telhado baixo, um entrançado de telhas velhas
que podem ser a minha salvação. Escapo-me. Caio, tropeço e levanto-me. Dou um
salto de dois metros depois de deslizar pelo oblíquo e de me agarrar a uma
antena ferrugenta. Aterro com a sorte e a elegância de um gato e apesar de me
doerem os tornozelos, corro dali para fora e desapareço entre as ruelas mal
iluminadas e vazias... corro, imaginando o sol nascente e o azul do céu do meu
futuro.
(escrito em 1997 e publicado no DNJovem em novembro de 2001)
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