A Vela e a Vingança
Quando olho aquela vela branca e inacabada,
baixa, tremeluzente, cuja chama amarelada me ameaça com um fogo frio e
inatingível ao toque, mas que me persegue por dentro, busca, corre, procura
algo que ficou, que ardeu, que chamuscou a curiosidade mais profunda do meu
ser... Lembro-me de uns olhos cujos segredos se encerravam na escuridão de uma
cave, de um chão sujo, de umas paredes brancas. De uma mulher que se escondia
por detrás de um sorriso de cobra, de palavras sábias e mordazes, de olhares
incomodativos.
«Que ódio!» pensava. Que vontade de a chamar
presunçosa, convencida, mimada! Porque tinha ela que ter sempre os melhores
argumentos, os sorrisos mais convenientemente hipócritas? Porque tinha ela de
mostrar que era mais esperta do que eu?
E quando me olhava no instante da ocasião, no
silêncio, mandava os seus olhos dizerem-me «Vingança!», como se soubesse que
esta lhe iria ser agradavelmente doce. Uma vingança sobre um assunto infantil,
uma brincadeira sem importância. E assim esperei que algo terrível sucedesse
durante a noite, enquanto eu dormisse. Eu, um homem de barba rija, com medo de
um pesadelo?!
Caminhava no meio da noite, com a vela acesa na mão,
espantando o medo absurdo de ser atacado à traição; surpreendido, sem defesas,
no escuro. Não conseguia dormir; ria suavemente com a expectativa, com o
ridículo da situação. Voltava a ser garoto.
Tentava transmitir-lhe, através da luz fraca do
pavio, a insegurança de que pudesse ser ela a atacada. Mas, quando o sono me começou
a derrotar, tive a perspicaz ideia de me deitar numa outra cama, vazia, do
outro lado do quarto, enquanto a ouvia dormir, na divisão contígua. Deitei-me,
finalmente, e coloquei a vela e um isqueiro na cabeceira, para não ser apanhado
tão facilmente no meio da escuridão.
E os sonhos chamaram-me e enrolaram-me em tramas
fantásticas, transportando-me para mundos longínquos. E dormi confortável,
confiante e seguro do meu poder. Acordei bem cedo, com o choque da luz do dia
nos meus olhos. Cheirei a vitória, o sorriso, a alegria de estar ileso, sem
pasta de dentes no cabelo, ou com o pijama cosido ao saco-cama. Mil e um
problemas poderiam estar lá fora; mil e uma interjeições para mil e uma
catástrofes; mas, apenas um pensamento, uma preocupação naquela noite: vencer a
batalha da teimosia, ganhar a guerra do medo.
E mais uma vez, como tantas outras vezes, pensei
levar a melhor, que a tinha enganado, assustado, feito tremer de pânico. Ainda
que ela se tivesse dado ao trabalho de me vir atacar durante a noite, não me
teria encontrado na cama do costume. E eu tê-la-ia surpreendido por trás, uma
mão silenciosa sibilando no seu pescoço. Que susto... Mas, não, nem sequer se
atrevera a devolver-me a partida que eu lhe pregara na noite anterior. «Não
teve coragem!»
Arrumei a cama em que dormira e voltei para a minha
habitual. Saboreei a noite bem dormida, os sonhos ainda presentes, observando o
quarto, os outros, à minha volta, que ainda dormiam, a cama, vazia, em minha
frente. Um isqueiro à cabeceira. Mas, e a vela? Onde estaria? Teria caído para
o chão, durante a noite? Olhei, por curiosidade, para o soalho, à procura da
vela. Não a encontrei... Mas, tinha a certeza que a tinha deixado na cabeceira!
Comecei a duvidar de mim próprio, desafiei-me a compreender o que teria
acontecido a uma simples vela, que eu guardara como se de uma protecção se
tratasse. A lógica que eu procurava, encontrei-a, mais tarde, quando passei
pelo seu quarto, e vi, junto da sua cama, a vela que eu tanto buscava. Lá,
estavam duas velas, a dela, ainda inteira, e a minha, tal como a reconhecia da
noite anterior. Só então compreendi. A sua maior vingança tinha sido a mais
inteligente. Deixar-me entregue ao meu próprio medo, e quando eu adormecesse de
cansaço, ela aproximar-se-ia do meu sono, a meio da noite, chegando bem perto,
o suficiente para que me pudesse pregar uma terrível partida, ou simplesmente
para poder contemplar os meus sonhos, a minha alma indefesa, uma inocência que
todos têm ao dormir... A vela roubada como sinal da sua visita silenciosa, um
recado dizendo que tinha compreendido tudo, a mudança da cama, o cheiro da cera
vigilante. A vela era simplesmente o troféu da sua vitória, da sua vingança. E
foi com um sorriso doce que a apreciei... e que lhe roubei de novo a vela.
Guardei-a como quem guarda uma flor seca por entre
as páginas de um livro, e quando a olho, lembro-me da simplicidade destes
instantes, passados no escuro e no silêncio, que no mundo das palavras e da luz
não existem, mas que na minha memória, e quem sabe na dela, existirão sempre
que acendermos uma pequena vela. E essa chama reconstituirá a provocação e a
vingança de duas crianças grandes, teimosas demais para admitir que cresceram.
Teimosas de mais para desistirem de um jogo.
(escrito em outubro de 1998 e publicado no DNJovem em dezembro de 2001)
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