Denúncias de um Cego


O velho relógio da Augusta avançava para as sete. As arcadas pesadas e cobertas de pó do tempo assistiam inertes à passagem de centenas de pessoas, jovens afogueados, mulheres estreitas e magras, outras anafadas e coradas, transportando seus sacos e suas malas cheios de rotinices e objectos íntimos. Homens gingavam, menos apressados, mas com passada larga, uma corridinha com o tronco direito, mãos nos bolsos, a atravessar à frente do autocarro. Já se via o sol, preguiçoso, do lado do Montijo. Era Inverno e os estorninhos apitavam em uníssono no céu, em voos picados, ponteados, procurando uma coerência estética que confundia todos os dias as senhoras que vendiam chocolates à porta da estação Sul-Sueste. O cheiro do rio lembrava as tainhas poluídas, o fresco de uma manhã nublada, o burburinho das pequenas e sujas ondas. O amontoado de gente que surgia do rio passava às centenas em levas diabólicas naquela passadeira onde é raro ver o chão. O boneco verde do semáforo apita, avisando os distraídos que seria necessário correr, por que daí a nada apareceria o primo vermelho, no andar de baixo. Há que apanhar o autocarro, o metro, calcorrear as ruas pedregosas daquela Baixa branca, mas enegrecida pelos fumos dos escapes, dos cigarros, das caganitas dos pombos.
A cidade também tem a sua erosão e a chuva, por vezes, é ácida, danifica espíritos e coisas, ainda que o velho Armindo, um dos vagabundos das arcadas do Terreiro do Paço, acredite que a chuva cura, benfazeja, liberta a culpa dos transeuntes. Está sentado no rebordo da calçada, vê de perto os sapatos das pessoas, prende-se com mais vagar numa mini-saia, um par de calças mais apertado. Vai gritando soltamente «Eu sei tudo! Eu sei tudo!». Grita porque sabe que não é escutado, e persiste «Eu sei muito mais do que todos vocês! Cambada de janotas, filhos da puta! Arrogantes! Se não se põem a pau, vão todos lá parar! Eu sei bem o que digo!!». Vociferava, encostado a uma antiga porta cerrada e ferrugenta. Não perdia tempo a limpar as unhas para se distrair, tinha antes ganho o hábito de se catar, de roer um piolho proeminente em seus longos e espessos cabelos. Coçava a barriga com as unhas compridas, enquanto procurava no bolso um resto de comida, um pedaço de entrecosto que tinha resgatado no dia anterior das traseiras do restaurante da esquina da Rua dos Correeiros.
Armindo José tinha uma identidade, uma história de vida, pretextos para se ficar na rua, indiferente ao frio das nuvens e ao frio das pessoas. Esquecera-se, no entanto, de toda a sua vida, do seu nome, de quem era ou onde estava. O presente em que vivia era uma estranha visão deturpada, confusa por uma miopia e por um astigmatismo levados ao extremo; deambulava, mas não era bêbado, era quase cego. Não sabia distinguir as feições de um ser humano com as de um manequim de montra, uma estátua, um boneco. Esquecera-se também de razões pelas quais havia de falar com um ser humano. E por isso, rente à noite, enquanto os outros realizavam o retorno aos lares, Armindo erguia-se, percorria os corredores largos da baixa e detinha-se em frente das montras, olhando e conversando baixinho com os manequins estáticos do outro lado do vidro. Contava-lhes histórias de há quarenta anos, gesticulava, ria-se, chorava-se. Encostava a sua testa à vitrina e procurava, enfim, alguma compreensão e algum afecto do objecto sem vida.
Desconhecia, mas ia fazer sessenta e nove anos no mês em que findava o Inverno. O torvelinho dos ventos, dos frios, dos confusos sons da modernidade atarantava-o, deprimia-o, e ele, o vagabundo mais solene das arcadas procurava no silêncio da noite gélida a ocasião perfeita para se expressar. Bradava furiosamente «Não! Não! Eu sei tudo! Deixem-me falar!».
 Armindo tinha perdido a noção do tempo e do espaço; arrastava-se pelos mesmos caminhos, todos os dias, porque eles significavam comida, um cobertor, um copo de leite. Não agradecia a ninguém, não acreditava na piedade dos sujeitos que se mexiam à sua frente, eram apenas vultos, impressões das quais desconfiava. «Livra! Que estes gajos estão em todo o lado! Deixem-me! Deixem-me! Já contei tudo o que sabia!» resmungava.
Na Rua Augusta, o velho era conhecido como o “leproso da António Maria Cardoso”. Os manhosos lisboetas dos recantos da baixa conheciam-no há muito tempo, sentiam-se impressionados pela resistência do velho Armindo. Nas sapatarias, as meninas sem clientela vinham às portas ver passar o vagabundo que gritava, arrastando seus farrapos, seus sacos de plástico azuis e amarrotados. O Zé António, sapateiro da rua com o mesmo nome, não suportava ouvi-lo gritar. «Berra, berra, cabrão! Hás de penar o que os outros penaram à tua custa!».
Numa sexta-feira de Fevereiro, os passos gigantescos dos loucos de Lisboa flutuavam mais lentamente. Tinha chovido terrivelmente e a cidade estava triste, molhada, como se estendida num varal. A massa completava o seu trajecto de forma lúgubre e cansada. As nuvens corriam e chocavam no céu, o rio revoltava-se, chorava birrento. O velho leproso não estava no seu lugar. Havia pelo menos uns quatro dias que não se ouviam seus brados de loucura, aqueles em que dizia saber tudo, que os outros de nada sabiam, mas que ele estava sempre disposto a contar.
«Sabe-se lá o que lhe aconteceu! Que tenha ido pró Diabo, leproso da merda!! Só sabia infestar a cidade com o seu hálito podre!», Zé António fechava as portas do seu estabelecimento na Rua dos Sapateiros. O candeeiro público tremia, por cima, e a luz faiscava. Era Juliana, a cozinheira do restaurante que por vezes servia pratos quentes de sobras ao velho Armindo, que perguntava pelo vagabundo. Havia dias que não aparecia, teria morrido?!
Teixeira, um polícia de bigode branco e acentuada calvície, viera fazendo a ronda desde a Rua do Comércio. Também dera pela falta dele, dos seus gritos habituais. Levado pela curiosidade, de que era principal instigadora Juliana, que o servia todas as sextas-feiras, perguntou na esquadra se sabiam do velho. Que sim. Que era afinal uma longa e estranha história e que o velho sabia muito mais do que as pessoas julgavam que soubesse. Teixeira arrepiou os ouvidos em conversas de café com o colega que tratara da ocorrência. Assim que se inteirou de tudo, correu a contar à D. Juliana, logo na segunda-feira, por horas do almoço. Fazia-se duro, normal, passara ali por “casualidade”, o estômago apertara e resolvera entrar. Estava de folga, não havia pressa e decerto que a cozinheira se arrastaria na molenguice da conversa depois do fogão desligado.
«Lembrei-me agora, D. Juliana... não era você que estava interessada em saber do velho leproso
A redonda Juliana ganhara expressão de curiosidade num rompante. Fazia-se escarlate, as sobrancelhas franzidas. Chegava-se mais ao homem. Pois que contasse... E Teixeira, dobrando suavemente um guardanapo de papel e ajeitando os talheres perto do prato, desatou a descrever pormenorizadamente o que o colega lhe contara dias antes.
Armindo José da Silva Nunes; nascido a 17 de Março de 1932; filho de serralheiro transmontano e de uma engomadeira lisboeta. Vive com os pais e com os seis irmãos à Graça, até ao fim da 2ª Guerra Mundial. Aos treze anos torna-se engraxador no Rossio e passa a viver num quartinho bolorento na Rua da Atalaia, em pleno Bairro Alto. Magro, escanzelado, um pouco disforme no andar, encontrara na audição o seu grande talento, o seu verdadeiro modus vivendi. Rapazola fraco, de tez trigueira, dentes amarelados, vivia engraxando, ouvindo histórias, pedindo esmolas, gratificações por qualquer serviço, fazia de tudo um pouco por uma moeda. Consideravam-no burro, adoentado, sem amigos, fraco de ideias. Desdenhavam-no, mas aproveitavam a sua servilidade, o seu jeito de se submeter muito aos homens de chapéu afiado. E desde os quinze anos que se tornara profissional da graxa, da mão estendida ao vento, às moedas que lhe caíam no regaço. E desde os quinze anos que se tornara colaborador dedicado da polícia política que por aí ruminava. Era o seu jeito de ser importante, de receber uns trocos a mais para se ir deliciar às sessões de poker dos seus amigos rufias. Para comprar tabaco, sapatos, doces e gelados, para convencer as meninas dos Anjos a levá-lo para as suas alcovas.
Tinha frequentado a 2ª classe, mas desistira assim que aprendera o mais importante, as letras e os números. Tinha sido uma criança apática e sonsa, pouco dada à família, aos colegas da escola. Detestava o pai, que lhe batia com um cinto. Desprezava os seus irmãos, todos mais novos, bebés, uns atrás dos outros, eram simples bonecos.
O hábito cresceu-lhe como uma hera manhosa e cedo criou dependência do seu disfarce de pobre coitado, com os dentes amarelados, olhos ignorantes, mãos enegrecidas da graxa. E os homens da Pide, sempre que por lá passavam –pela graxa do Armindo-, foram confiando cada vez mais no rapaz, que se transformou em homem, não deixando, contudo, o seu aspecto pobre e adoentado e o mesmo jeito  apoucado de ser. Aos dezoito anos, decidiu que se juntaria à Legião Portuguesa, ou ao Exército, ou à Marinha, ou à GNR, ou à PSP. Na Pide, diziam que ele não tinha estudos, que era praticamente analfabeto, que teria primeiro que passar pela tropa, fazer-se homem, quem sabe, mais tarde, polícia de trânsito. Armindo foi recusado em todas elas. Baixo demais, magro demais, cegueta, manco, idiota, mal poderia com o peso de uma arma. Intimamente, gritava urras a Salazar, a Carmona, à Situação, mas o seu destino não poderia passar pelas fileiras dessas forças que tanto admirava, passava, com certeza, e apenas, pela graxa e pela delação, segundo o dedicado amigo agente da António Maria Cardoso, que engraxava seus sapatos, frequentemente, no Rossio. E que mantivesse a esperteza e a discrição, que haveria de ser recompensado como sempre.
A história de Armindo prolongou-se, estanque, pela vida fora. A sua visão degradara-se, a bebida começava a delinear-se no horizonte enquanto refúgio de uma felicidade escondida, e só muito esporadicamente pensava nos outros, na família, na mãe –com quem deixara de falar -, nos pobres Zés que ele denunciava, nem sempre com fundamento... Tornara-se de ano para ano mais manhoso, menos falador; mudara de poiso três ou quatro vezes; passara a trabalhar em jornais, em tabernas, de tarde, à noite. Acumulava histórias, testemunhos, olhares e palavras suspeitos, rostos misteriosamente desconhecidos, procurava, incessante, indícios de comunismo, de traição, de extremismos. E sabia reconhecer outros informadores, menos discretos na arte de ouvir e de observar. «Amadores!», pensava, orgulhoso de si mesmo. Tomara a vida como um jogo. Sozinho, solteiro, sem companheiros do vinho, Armindo era o típico tímido, desmiolado, pouco acordado para as coisas da política. Nem de futebol pescava; também não sabia rezar. E durante toda a sua vida enganara os outros com quem convivia. Todos os outros informadores se topavam à légua, mas Armindo fizera-se de estúpido desde que nascera só para poder desempenhar ainda mais incrivelmente o seu papel, a sua função. No fundo, no tal jogo da vida, ele era sempre o vencedor, o mais esperto de todos. E para isso, ele prescindira de uma vida normal, sã, honesta, um casamento, quem sabe. Quando fez quarenta anos, Armindo acumulara já no baú do seu quarto feio e bolorento, umas boas dezenas de contos de réis. Fazia parte do disfarce, pensava, não poderia exibir a fortuna que ganhava. Os sinais exteriores de riqueza denunciá-lo-iam decerto e ele perderia o acesso à sua profissão.
Bateram-lhe à porta um dia de madrugada, corria o ano de 1972. Armindo, pejado de cabelos brancos e de artrite nos joelhos, foi arrastado pelas escadas por três pides de gravata escura. Ele dizia que era engano, que estavam atrás do homem errado. Proferia em voz baixa que era colaborador, que era um deles... Os homens, empertigados, de colarinhos bicudos e suíças farfalhudas, respondiam «Já explicas tudo! Já explicas tudo!».
O informador Armindo José da Silva Nunes entrava na sede da PIDE pela primeira vez na sua vida eram quatro da manhã de um Junho sufocante. Os leões de ferro na porta por onde entrou pareciam-lhe vivos, faiscantes, rangendo os dentes. Tinha sido denunciado, alguém o tinha bufado à PIDE-DGS. Era um agitador, uma ameaça, um colaborador dos comunistas; que fazia jogo duplo, distribuía o Avante, etc, etc. Surgiram provas do nada, nomes, testemunhas.
«Mal entendidos, não passam disso!»
Eram, na verdade, mal entendidos, acusações infundamentadas. Armindo era inegavelmente um patriota, inimigo dos comunas, colaborador acérrimo do regime! Os inspectores mais antigos pouco lhe ligaram. Fecharam-no numa sala branca, gélida, umas vezes, outras vezes, tórrida. Parecia-lhe ouvir gritos, murmúrios, gemidos, vindos dos cantos da sala. E de quando em quando era espancado, obrigado a manter-se de pé durante horas a fio, sempre as mesmas perguntas, às quais ele não sabia responder. Resolveram depois enviá-lo ao Aljube, no alto da Sé. Lá, não incomodaria tanto, e depois aprenderia, em dois dias, a lição do que acontece a quem é traidor duas vezes. Permaneceu nas gavetas do Aljube durante três meses, a sopas e cafés, murros e chapadas. Não tardou a adoecer. Perdeu o juízo, a fala, uma dezena ou duas de quilos. Foi transferido para Caxias, e de novo regressou ao Aljube, meio aloucado, violento, mudo e surdo, ficando cada vez mais cego, sem os seus preciosos óculos. Deixou-se apodrecer aos cantos, sem vida, preso por dentro e por fora, chorando de noite com os olhos esbugalhados no tecto.
Veio o dia em que as cancelas se abriram, as grades deixaram de abrigar os presos políticos; os seus processos eram revistos, decidiam o que haviam de fazer. Armindo foi solto. Abriram-lhe a porta e ele foi. Diziam que era a liberdade, que podia sorrir, voltar para a sua família, para sua casa. Não agradeceu porque não compreendeu nada. O passo que deu em frente foi intemporal, e a partir desse momento, sem amigos, sem família, sem  pides que o pudessem valer ou matar, o único espaço era o contorno vago das ruas da baixa. O olhar desfocado, a incerteza do que iria fazer. Vagueou durante vinte e sete anos pelos recantos sujos da cidade. Pernoitou em bancos de jardim, na relva fofa dos parques, em cemitérios, estacionamentos, soleiras de portas.
Recuperou a voz num dia normal de Primavera, em finais da década de oitenta, no momento em que agradecia a esmola que um velho da sua idade lhe dera. A partir desse dia, passou a falar, a rir, a chorar, a mijar-se deliberadamente. Entregou-se totalmente à vagabundagem. Já não era um simples louco, era alguém que perdera tudo, ainda que tivesse a sensação que jamais tinha tido alguma coisa. «O baú...», balbuciava de vez em quando, coçando os cabelos imundos.
O sapateiro Zé António conhecia-o, sabia da sua história, o seu nome, o que lhe tinha sucedido. Chamava-o de leproso da António Maria Cardoso, regozijava-se do seu declínio pérfido, do seu destino trágico, «Cada um tem o que merece!», cuspia.
Armindo tinha sido encontrado morto na esquina da Rua Vítor Córdon com a Rua António Maria Cardoso. Às portas da degradada e esquecida PIDE. Agarrado aos seus sacos de plástico rotos e sujos, boca aberta, muito babada, braços rígidos curvados em torno do tronco, pernas cruzadas, os sapatos esfarrapados e alinhados, ao lado.

Teixeira contara a sua história rápida e deliciosamente. Dizia, para rematar, que os moradores do prédio em frente ao da PIDE teriam ouvido os últimos brados do vagabundo.
«Eu sei tudo! Eu sei tudo! Posso contar-vos tudo!...Se me deixarem...! Eu tenho um baú velho cheio de contos de reis! Vocês não sabem, mas eu posso contar-vos como foi que o arranjei! Eu sei tudo! Eu sei tudo!...»
Juliana estava estarrecida com a história do polícia Teixeira. Agora compreendia por que razão o sapateiro odiava o velho, mas era tão nova, mal fizera os trinta, pouco ou nada percebia desses ódios do passado. Já se vivia o século XXI, era o futuro, sabia lá onde tinha sido a Pide, ou quem tinha trabalhado para ela, estava tudo tão longe. Sentiu pena do pobre Armindo; no seu entender, não tinha passado de uma vítima da ignorância, da falta de sentimentos, de orientação. Apesar de tudo, era inofensivo...
«Afinal, ‘tá a ver, Dona Juliana, os loucos que por aí andam são menos loucos do que pensamos...»
«Credo, Sr. Agente! Se não é chamar louco a este homem, o que lhe havemos de chamar?... Que coitado!»
Dobrou o pano da cozinha em quatro e lançou-o ao ombro, virando as costas ao polícia. O Teixeira, esse, terminou o café amargo, pagou, e acenou um breve adeus para a cozinha. Soubera-lhe bem a refeição, mas estava ainda mais saciado com a história que acabara de relatar. Enfim, o talento de saber ouvir histórias não dispensava a capacidade inebriante de as saber reproduzir. No fundo, a denúncia era apenas isso.       

(escrito em julho de 2001 e publicado no DNJovem em março de 2002)

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