O Espelho





A água corria frenética no lavatório. O sangue soltava-se dos poros libertando culpa e violência. O seu respirar, o cansaço. As veias que não paravam de tremer. O sangue que desaparecia com a água. O espelho, cruel objecto de denúncia. Evitava-o.
«Ricardo! Que vergonha! Outra vez à bulha!? Vai já lavar esse sangue! Seu rufia! Vais ver...! Um dia ainda te vais arrepender de seres assim!!». Não, não ia! Nem que morresse numa briga, mas nunca voltaria a ser cobarde! «Xoninhas... anda lá, não sejas cobardolas!» incitavam os miúdos da escola.
Agora. Anos depois. O que seria dele? Quem seria ele? Não, não ia desistir! Ia ser duro até ao fim.
 Negava constantemente aqueles momentos de lucidez em que a razão parecia arrepender-se dos males que praticara. Pensou muitas vezes em parar. Mudar de vida. Chegou até a trabalhar num restaurante mexicano. O resultado seria o esperado, não resistia à tentação de ser Deus, e como tal, arranjou destino ao Speedy Gonzalez, o seu rico patrãozinho, que nunca na vida voltaria a cantar a Cucaracha...
Riu-se, às escuras, naquela casa-de-banho nojenta e malcheirosa. Riu alto e forte. Passou as mãos com água pelo rosto bonito e diabólico. Sentiu o cabelo seco e crespo e decidiu por a cabeça debaixo da torneira. Olhou-se, então, ao espelho. Desafiou o coração e olhou para si próprio. Viu o brilho dos seus olhos e o pingar malicioso dos seus cabelos revoltados e curtos. A luz da noite no vidro da janela. O silêncio. O respirar. As memórias.
«Muito bem, meu filho, estou orgulhoso de ti, campeão! Arrumaste-o para toda a vida!» Oh, pai, olha para ele agora, triunfante e corajoso! Alegra-te...
Lembrava aquela noite. O poder. O prazer. Primeiro, foi a Bia ter com ele. Finalmente, conseguira-a! Havia meses que a trazia debaixo d’olho, mas ela era durona, difícil, dizia que tinha namorado... Mas acabou por não resistir ao seu charme e entregou-se como uma perdida nos seus braços. Como isso lhe enchia o ego; como lhe proporcionava aquele momento majestoso que é o poder de dominar, de conquistar, de vencer. Depois, o Speedy Gonzalez, que ele teve a honra de encontrar, por “acaso”, às tantas da madrugada num parque de estacionamento... Fugira dele, o maroto, onde já se viu?! Fugir ao deus Ricky...!
Encostou a testa à superfície lisa e fria do espelho e fechou os olhos, saboreando o sentimento da maldade, o poder malévolo que sentia por instinto, o prazer de ser especial e único, o melhor. Correra imenso. Sentira o bater do coração da futura vítima nos seus ouvidos. O seu pânico, o seu desespero por um refúgio, uma arma, um polícia! Mas, não! Nada o impediria de triunfar! Àquela hora da madrugada, ninguém salvaria aquele mexicano gordo da sua vingança temperada e apetitosa! Passou a língua pelos lábios. Lembrou-se de Bia, a sua conquista recente. Sentiu o calor do seu corpo e a paz do seu espírito. Lembrou-se das palavras ternas e suaves que ela lhe sussurrara naquela tarde, naquele quarto pequeno e abafado. Lembrou-se dos seus suspiros amorosos. De se sentir bem. Normal. Amado.
Fumou o último cigarro do maço, lenta e arrastadamente. Ouviu a mãe gritar com ele quando descobriu que fumava. Sorriu maquiavelicamente. «Raio da velha!» Expelia o fumo em argolas, imaginando a irritação que provocaria na mãe, se o visse naquele momento...
Encostou-se à parede e sentiu frio. Arrepiou-se. Terminou o cigarro e lançou-o profissionalmente para dentro da sanita. Lembrou-se. «Lavar retretes! Pffh...» Mas, fizera-o. Ele obrigara-o a lavar casas-de-banho como aquela. «Limpar a merda dos outros!?» Que o fizesse ele. O deus Ricky tinha mais que fazer!... E a maneira como ele esguichava aquelas palavras sujas como se ele fosse um cão pulgoso e lazarento. Ai, havia de as engolir...!
Sentia o corpo cansado e dorido. A luta não tinha sido fácil. As coxas estavam duras da corrida, os joelhos esfolados, os nós dos dedos ardiam. A água da face secara, mas escorria ainda pelo pescoço abaixo, languida e demoradamente.
Uma mosca atrapalhou-lhe o pensamento. Nem o escuro o impediu de a esborrachar contra a parede. Aquele momento único e fantástico da caçada! O filar das unhas na pele, o aperto selvagem, o poder da mente que é mais forte do que o mundo! O esplendor do brilho e do som metálico da lâmina que se ergue magicamente... O encerramento do aço... O último gemido... A dor fulminante... O silêncio. A calma. O fim. O desaparecimento do corpo. E o dele...
Viu-se de novo ao espelho. Ia ter mais um momento de lucidez. «Serei louco?! Mãe, serei louco!?».
Sentiu o seu corpo em brasa. O suor surgindo descomensuradamente. A respiração desconcertada. Soltava gritos roucos e animalescos. Sentiu a tontura de quem corre sem destino, com medo de cair num buraco. Sentiu o frio da noite. O frio da vida. Viu a mãe gargalhar na sua frente; viu a Bia com outro homem, num quarto quente e apertado, dizendo-lhe as mesmas coisas que lhe dissera a ele; o pai, atrás das grades, virando-lhe as costas; o corpo ressuscitado do Speedy Gonzalez perseguindo-o com a mesma ponta e mola que o assassinara.
Sentiu o cheiro a sangue. O espelho. Era ele! Denunciara a sua loucura! Entre a culpa e o prazer, ali estava ele, o deus Ricky...! A sua insanidade não era senão o deambular entre o arrependimento e a maldade. Se ao menos pudesse escolher...
«NÃO!»
 Chocou a testa contra o espelho e começou a chorar. Este, partido em mil pedaços, era a sua vida acidentada. Fragmentos de dor, prazer, doçura e cinismo.
Passou a língua pelos lábios. Saboreou o sangue e o sal das lágrimas e deixou-se escorregar pela parede. Sentou-se no chão, sem forças, abandonado pelo pai. Olhar vazio, sem sentimentos. Parou de chorar. Viu em frente a mosca esborrachada e respirou fundo. Sorriu, aliviado. Tudo aquilo não passara de mais um momento de loucura. Fechou os olhos e fingiu fumar.

(escrito em maio de 1996 e publicado no DNJovem em outubro de 1996)




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