O Pacto de Sangue
Foi tudo para te fazer feliz. Tudo...
O inferno que me aguardava e as chamas azuis e
salgadas que me queriam consumir ficaram para trás num caldeirão podre e
enferrujado de lembranças tristes.
Por ti, fugi ao abismo da loucura, à
impaciência da minha delinquência. Por ti, saí do esconderijo da vergonha e do
medo. Destapei-me da sujidade do ódio. Deixei de pensar que o mundo não existia
e que a vida é um saco roto e estragado.
Passei a olhar para o céu e a ver o princípio
das coisas. Comecei a olhar para a terra no chão, para o mar sob o horizonte –
que eu jamais tinha observado – e a gritar bem alto para acordar a vida, que
estava só adormecida dentro de um baú velho.
Por ti, comecei a rir às gargalhadas no meio
do nada e a olhar as montras com vontade não de assaltar mas de comprar,
comprar coisas para te oferecer. Para te ver com elas e pensar que foi por ti
que as comprei.
Tu foste o maior sacrifício da minha vida.
Deste-me dores, náuseas, lágrimas e suores. Deste-me todos os pesadelos da
humanidade e despertaste-me para um medo aterrorizador... o de te perder, de me
perder a mim.
Eu, a maior pecadora da minha rua, com
medo... O que tu me fizeste?!... Fizeste-me feliz.
Fizemos um pacto de sangue; misturámos as
nossas seivas numa só, criámos o laço inquebrável que só as estrelas possuem.
Embrulhámos magia com amor. Juntámos os nossos espíritos e semeámos o milagre
da felicidade.
O sangue escuro e estranho que derramei
tornou-se longínquo. Purifiquei-me no dia do nosso pacto, no dia em que,
horrorizada de medo, sozinha e desesperada, tu me brindaste com a tua
liberdade. Eu, que aspergia dores temíveis e inacreditáveis e que pensei morrer
por ti se fosse necessário. Eu que pensei que me rasgavas inteira por entre
sangue e sangue e suor.
Tu, que forte e imenso, querias respirar,
acordar desse sono vermelho e opaco e ver a luz... a luz do céu, do mar, da
terra. A luz dos meus olhos inundados de água e sal. A luz do meu sorriso de
criança a olhar para ti.
Eu, que sofrera uma pequena vida inteira,
tinha diante de mim, vermelhinho e rabugento, saído do meu ventre e banhado com
o meu sangue, a minha melhor obra-prima, tu.
Apaguei tudo. Não escondi, nem menti,
simplesmente não me importei mais. Deixei à deriva o meu passado pecaminoso e
sujo de vidas ainda mais sujas, vidas que ousaram um dia traçar-me um destino
sem que eu pudesse perguntar porquê e para onde... Não esqueci, mas ri-me. Já
nada disso tinha importância.
Tu és o meu anjo pequenino que se alimentou em
mim e que dormiu em mim. O único a quem jurarei amor eterno. O único com quem
farei um pacto de sangue e de amor para todo o sempre.
Foi tudo para te fazer feliz. E quem sabe, se
é que tenho esse direito, de ser eu própria feliz...
Hoje, dezassete anos passados, exibes-me
orgulhosamente na rua. Apresentas-me aos teus amigos com um brilho que me
comove. Chamas-me mãezinha sem medo de pareceres infantil e conversas
comigo como se conversasses com o teu melhor amigo...
Porque és assim? Será que te lembras, filhote,
daquele pacto de sangue? Não... eras tão pequenino!...
(publicado em 1997 no DNJovem)
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