Jerónimo




Angola, 28 de Dezembro de 1967.
 
Já é manhã. Ainda ninguém conseguiu dormir depois do que aconteceu esta noite. Para dizer a verdade, às vezes penso que desde que embarquei naquele avião ainda não acordei, e por mais que me sinta acordado é como se o sono fosse interminável e me sentisse prisioneiro dentro da minha própria consciência. Tento fugir da palavra pesadelo; acho que já é muito comum dizer-se que a guerra é um desses sonhos maus, mas cada vez mais me capacito que na minha situação (e na de muitos mais) uma pessoa não tem tempo para ser diferente e original.
Estou simplesmente cansado. Estes primeiros três meses foram autênticos três anos de tortura e esgotamento. Não posso dizer que não tenha amigos. Tenho o Joaquim, o Afonso e o Artur... são gajos porreiros! Quando nos reunimos para beber uma cerveja, fazemos de conta que estamos em Portugal e recordamo-nos de coisas idiotas e infantis, das nossas brincadeiras de putos, dos ralhetes das nossas mães, das miúdas que namorámos às escondidas. E acabamos sempre por nos empielar, entre risos e silêncios.
Dou por mim a pensar muitas vezes que não percebo o que se passa. Disparo metralhadoras, conduzo tanques, transporto o rádio e transmito mensagens de que desconheço o significado, mantenho-me acordado, horas e horas a fio, andando, arrastando-me, obrigando-me a estar à alerta... tudo isto porque tenho que ser homem à força? Porque tenho que defender a minha pátria?!
Vai dar tudo à mesma.

Esta noite, pela primeira vez em três meses, ri-me da guerra. Apercebi-me que era ridícula. Totalmente absurda, plena de ironias, de estupidez humana... e do nosso infortúnio, que cá estamos para dar a nossa vida de rapazes a um erro da história.
«Temos direitos aqui! Esta terra é nossa! Lute-se! Lute-se!» diz o sargento Ferreira. Engulo respostas que estão ao contrário do que os outros dizem. Sou apenas um rapaz de Lisboa, não perturbo a vida de ninguém, limito-me a viver, a trabalhar, a sair de vez em quando à noite. Namoro, rio-me e choro quando me apetece, sou até um pouco ignorante, admito, mas acho... acho, não, tenho a certeza, que esta não é a nossa terra! Fomos nós que nascemos aqui e não eles? Ou é simplesmente nossa por a termos roubado aos turras?!
...Mais uma palavra que eu incluí no meu vocabulário sem dar conta. É certo que fui treinado para odiar o inimigo, ninguém consegue disparar contra alguém sem o mínimo de ódio, de medo, mas se não fosse a guerra, teria eu motivos para os matar, para os expulsar das nossas terras? Muitos fazem-no porque acreditam na palavra turra, preto. Não faz lá muito sentido na minha cabeça, essa coisa do racismo; que mal tem, eles terem nascido escuros? Aliás, aqui o sol é tão escaldante que nós próprios nos tornamos cada vez mais esturrados!
No outro dia, fui visitar um ex-companheiro nosso, por sinal, angolano, que foi mais mais cedo para casa, e a miudita dele, com seis anos, começou a falar comigo como se me conhecesse há meses. Disse-me uma coisa curiosa, tendo em conta a cor escura da sua pele: os brancos teriam de compreender os pretos porque foi Deus que escolheu a cor para cada um; que o branco teria nascido de dia e por isso seria branco como a luz do sol; e que o preto nascera de noite onde a lua e as estrelas só poderiam brilhar através dos dentes, dos olhos e das palmas das mãos e dos pés! Perguntei-lhe quem lhe tinha ensinado semelhante coisa, ela levou as mãos à cintura e disse fantasticamente «Não é óbvio?!...».
Ficou, então, tudo mais claro na minha cabeça. Combatemos uma guerra de prepotências e racismos. Não é óbvio?... O Joaquim não concorda, é o mais novo, mas o mais patriótico, diz que percebe muito mais do que a gente por ser estudante de História. Afirma que o Salazar foi a melhor coisa que podia ter acontecido a Portugal, que o que é preciso é autoridade e disciplina para governar um país, blá, blá, blá, blá... e depois vem com aquelas tretas dos Descobrimentos e das conquistas dos portugueses por todo o mundo, e coisas assim do género que o pessoal já estudou na 4ª classe há muito tempo, mas que não dá nada vontade de lembrar. Apesar de tudo, os futuros alunos do Joaquim não irão, decerto, adormecer nas suas aulas, da maneira como ele é efusivo e nacionalista, quase que se cospe todo e os olhos arregalam-se como se fosse louco.  O pessoal goza com ele, dizem que um dia há de ser político, ou então vai para a P.I.D.E.. Prefiro ser um pobre ignorante...
O Afonso, não... esse é um grande pândego. É o mais velho e o que já cá está há mais tempo. Tentou ensinar-nos a diferença entre matar e morrer, embora as lições dele não tenham convencido muita gente. «Nós não matamos ninguém aqui, disparamos para o arvoredo, para as ameaças que lá vêm, para as balas que voam na nossa direcção. Defendemo-nos, é isso que nós cá estamos a fazer! No entanto, às vezes, é preciso utilizar estratégias de ataque que acabam por causar mortos e feridos. Este é o jogo da guerra. No fim, quem se conseguir levantar e ir para casa é o vencedor.»
Talvez por ser teimoso, ou simplesmente estúpido, não consigo acreditar em nada disto. Não sei se mato alguém, se por acaso já mandei rebentar alguma aldeia pelas mensagens codificadas que transmito, mas teimo em pensar que ainda sou inocente, que estou aqui porque querem que eu esteja... depois sinto-me culpado, assassino, e penso que Deus nos castigará a todos mais cedo ou mais tarde. Acabo por adormecer, exausto, fingindo estar morto para me redimir do mal que me obrigam  a fazer, mas que eu, tantas vezes, já faço por egoísmo, por medo de morrer.
O Afonso não precisa de nada; não conversa essas coisas connosco, chamamos-lhe o Farras por isso mesmo. É o que mantém o ânimo do pessoal, o primeiro a abrir uma garrafa de cerveja. Não consigo deixar de o admirar. A calma e o divertimento com que encara a guerra; ri, canta e conta anedotas... uma boa maneira para disfarçar tristezas, saudades, dores. Ouvi-o eu, uma noite, a chorar do modo mais triste que já alguma vez ouvi alguém chorar. Tinha saudades do cheiro do Minho - a sua terra -, do frio. Foi a única vez que o vi desabafar. Por que raio o gajo tem de ser assim, todo durão, porque nos faz sentir ridículos quando queremos chorar?! O Joaquim também não quer admitir o mesmo, a maior parte das vezes. É paranóico, o gajo! Diz que podemos ser heróis se lutarmos pela nossa pátria... quero lá ser herói, o que eu queria era viver em paz!
No outro dia, fui a Luanda fazer umas compras. Comprei A BOLA, que dizia que o Benfica ia à frente no Campeonato. Ainda é muito cedo para o final da época, mas eu acredito na equipa do Sporting, este ano. Vamos lá ver. De vez em quando, fazemos uns joguitos entre o pessoal. O Artur delicia-se sempre que há tempo para a bola, é o vício dele, o seu grande sonho: ser futebolista. Já se contentava em ser apenas fiscal de linha, árbitro, apanha-bolas, desde que pudesse viver para o futebol. É um gajo muito porreiro, calmo, esperto, o predilecto das miúdas cá do sítio, e consegue ao mesmo tempo ser simples e humilde. Ave rara! Detesta a guerra, como eu, mas não o apregoa por aí; não quer sarilhos, prefere confiar no tempo, que o levará de volta a casa um dia, se não... paciência.
Apesar de o achar o mais parecido comigo, em termos de feitio, não consigo conter-me em certas situações, enquanto ele consegue. Chamam-me revolucionário porque às vezes enfio um sopapo na cara de algum que me enerva. É o Artur o primeiro a agarrar-me, o que não quer dizer que não esteja do meu lado ou que não concorde com o que faço.
Há três dias foi Natal. Sempre o passei em Lisboa, com camisolas de lã até ao pescoço, as ruas iluminadas, as músicas natalícias na rádio. Nunca tinha passado um Natal em tronco nú. Estava um calor especialmente infernal, passámos o dia todo acampados perto de uma aldeia pequena. Aproveitei para tirar fotografias à malta. O Afonso arranjou umas espumas brancas, daquelas de enfeitar as árvores de natal, para fabricarmos uns enfeites à maneira! Foi uma paródia a tarde toda, uma mistura de Natal com Carnaval, e como não tínhamos a companhia da nossa família, e não tínhamos comprado prendas uns aos outros, resolvemos embebedar-nos, como sempre que queremos disfarçar as nossas saudades de casa, as tristezas.
Mas, como dizia há pouco, a guerra para além de cruel, é ridícula. Nada melhor do que aconteceu na noite passada para demonstrar que o que digo é verdade. E depois digam-me quem é que é o louco...
Passava da uma da madrugada quando fomos todos acordados. Estávamos em pleno mato, era necessário não alertar o inimigo que nos emboscava. Pegámos nas nossas armas e preparámo-nos para um possível ataque. É muito difícil ver de noite, na floresta, não havia lua, mas conseguíamos ver perfeitamente imensos pontinhos luminosos, lá ao longe, tão longe que era impossível distinguir quantos eram ou saber quem seriam e o que estariam ali a fazer. Esperámos um pouco mais. Até que a ordem surgiu: o primeiro Cabo mandou disparar até esvaziar a barriga das máquinas, e assim foi. Disparámos durante mais de um minuto, mas ninguém ripostou. No fim, as luzes continuavam no horizonte, mais brilhantes que nunca. Foi quando o Artur, o mais esperto, se sentou num pequeno tronco de árvore tombado, e disse: «Ao ponto que nós chegámos! Agora até fazemos guerra com os pirilampos...!!»
Não é óbvio?!

(escrito em maio de 1995 e publicado em março de 1996 no DNJovem - 1.º Prémio)

                                                                 

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