Jerónimo
Já
é manhã. Ainda ninguém conseguiu dormir depois do que aconteceu esta noite.
Para dizer a verdade, às vezes penso que desde que embarquei naquele avião ainda
não acordei, e por mais que me sinta acordado é como se o sono fosse
interminável e me sentisse prisioneiro dentro da minha própria consciência.
Tento fugir da palavra pesadelo; acho que já é muito comum dizer-se que
a guerra é um desses sonhos maus, mas cada vez mais me capacito que na minha
situação (e na de muitos mais) uma pessoa não tem tempo para ser diferente e
original.
Estou
simplesmente cansado. Estes primeiros três meses foram autênticos três anos de
tortura e esgotamento. Não posso dizer que não tenha amigos. Tenho o Joaquim, o
Afonso e o Artur... são gajos porreiros! Quando nos reunimos para beber uma
cerveja, fazemos de conta que estamos em Portugal e recordamo-nos de coisas
idiotas e infantis, das nossas brincadeiras de putos, dos ralhetes das nossas
mães, das miúdas que namorámos às escondidas. E acabamos sempre por nos
empielar, entre risos e silêncios.
Dou
por mim a pensar muitas vezes que não percebo o que se passa. Disparo
metralhadoras, conduzo tanques, transporto o rádio e transmito mensagens de que
desconheço o significado, mantenho-me acordado, horas e horas a fio, andando,
arrastando-me, obrigando-me a estar à alerta... tudo isto porque tenho que ser
homem à força? Porque tenho que defender a minha pátria?!
Vai
dar tudo à mesma.
Esta
noite, pela primeira vez em três meses, ri-me da guerra. Apercebi-me que era
ridícula. Totalmente absurda, plena de ironias, de estupidez humana... e do
nosso infortúnio, que cá estamos para dar a nossa vida de rapazes a um erro da
história.
«Temos
direitos aqui! Esta terra é nossa! Lute-se!
Lute-se!» diz o sargento Ferreira. Engulo respostas que
estão ao contrário do que os outros dizem. Sou apenas um rapaz de Lisboa, não
perturbo a vida de ninguém, limito-me a viver, a trabalhar, a sair de vez em
quando à noite. Namoro, rio-me e choro quando me apetece, sou até um pouco
ignorante, admito, mas acho... acho, não, tenho a certeza, que esta não é a
nossa terra! Fomos nós que nascemos aqui e não eles? Ou é simplesmente nossa
por a termos roubado aos turras?!
...Mais
uma palavra que eu incluí no meu vocabulário sem dar conta. É certo que fui
treinado para odiar o inimigo, ninguém consegue disparar contra alguém sem o
mínimo de ódio, de medo, mas se não fosse a guerra, teria eu motivos para os
matar, para os expulsar das nossas terras? Muitos fazem-no porque
acreditam na palavra turra, preto. Não faz lá muito sentido na minha
cabeça, essa coisa do racismo; que mal tem, eles terem nascido escuros? Aliás,
aqui o sol é tão escaldante que nós próprios nos tornamos cada vez mais esturrados!
No
outro dia, fui visitar um ex-companheiro nosso, por sinal, angolano, que foi
mais mais cedo para casa, e a miudita dele, com seis anos, começou a
falar comigo como se me conhecesse há meses. Disse-me uma coisa curiosa, tendo
em conta a cor escura da sua pele: os brancos teriam de compreender os pretos
porque foi Deus que escolheu a cor para cada um; que o branco teria nascido de
dia e por isso seria branco como a luz do sol; e que o preto nascera de noite
onde a lua e as estrelas só poderiam brilhar através dos dentes, dos olhos e
das palmas das mãos e dos pés! Perguntei-lhe quem lhe tinha ensinado semelhante
coisa, ela levou as mãos à cintura e disse fantasticamente «Não é óbvio?!...».
Ficou,
então, tudo mais claro na minha cabeça. Combatemos uma guerra de prepotências e
racismos. Não é óbvio?... O Joaquim não concorda, é o mais novo, mas o mais
patriótico, diz que percebe muito mais do que a gente por ser estudante de
História. Afirma que o Salazar foi a melhor coisa que podia ter acontecido a
Portugal, que o que é preciso é autoridade e disciplina para governar um país,
blá, blá, blá, blá... e depois vem com aquelas tretas dos Descobrimentos e das
conquistas dos portugueses por todo o mundo, e coisas assim do género que o pessoal
já estudou na 4ª classe há muito tempo, mas que não dá nada vontade de lembrar.
Apesar de tudo, os futuros alunos do Joaquim não irão, decerto, adormecer nas
suas aulas, da maneira como ele é efusivo e nacionalista, quase que se cospe
todo e os olhos arregalam-se como se fosse louco. O pessoal goza com ele, dizem que um dia há
de ser político, ou então vai para a P.I.D.E.. Prefiro ser um pobre
ignorante...
O
Afonso, não... esse é um grande pândego. É o mais velho e o que já cá está há
mais tempo. Tentou ensinar-nos a diferença entre matar e morrer, embora as
lições dele não tenham convencido muita gente. «Nós não matamos ninguém aqui,
disparamos para o arvoredo, para as ameaças que lá vêm, para as balas que voam
na nossa direcção. Defendemo-nos, é isso que nós cá estamos a fazer! No
entanto, às vezes, é preciso utilizar estratégias de ataque que acabam por
causar mortos e feridos. Este é o jogo da guerra. No fim, quem se conseguir
levantar e ir para casa é o vencedor.»
Talvez
por ser teimoso, ou simplesmente estúpido, não consigo acreditar em nada disto.
Não sei se mato alguém, se por acaso já mandei rebentar alguma aldeia pelas
mensagens codificadas que transmito, mas teimo em pensar que ainda sou
inocente, que estou aqui porque querem que eu esteja... depois sinto-me
culpado, assassino, e penso que Deus nos castigará a todos mais cedo ou mais
tarde. Acabo por adormecer, exausto, fingindo estar morto para me redimir do
mal que me obrigam a fazer, mas que eu,
tantas vezes, já faço por egoísmo, por medo de morrer.
O
Afonso não precisa de nada; não conversa essas coisas connosco, chamamos-lhe o Farras
por isso mesmo. É o que mantém o ânimo do pessoal, o primeiro a abrir uma
garrafa de cerveja. Não consigo deixar de o admirar. A calma e o divertimento
com que encara a guerra; ri, canta e conta anedotas... uma boa maneira para
disfarçar tristezas, saudades, dores. Ouvi-o eu, uma noite, a chorar do modo
mais triste que já alguma vez ouvi alguém chorar. Tinha saudades do cheiro do
Minho - a sua terra -, do frio. Foi a única vez que o vi desabafar. Por que
raio o gajo tem de ser assim, todo durão, porque nos faz sentir ridículos
quando queremos chorar?! O Joaquim também não quer admitir o mesmo, a maior
parte das vezes. É paranóico, o gajo! Diz que podemos ser heróis se
lutarmos pela nossa pátria... quero lá ser herói, o que eu queria era
viver em paz!
No
outro dia, fui a Luanda fazer umas compras. Comprei A BOLA, que dizia
que o Benfica ia à frente no Campeonato. Ainda é muito cedo para o final da
época, mas eu acredito na equipa do Sporting, este ano. Vamos lá ver. De vez em
quando, fazemos uns joguitos entre o pessoal. O Artur delicia-se sempre que há
tempo para a bola, é o vício dele, o seu grande sonho: ser futebolista. Já se
contentava em ser apenas fiscal de linha, árbitro, apanha-bolas, desde que
pudesse viver para o futebol. É um gajo muito porreiro, calmo, esperto, o
predilecto das miúdas cá do sítio, e consegue ao mesmo tempo ser simples e
humilde. Ave rara! Detesta a guerra, como eu, mas não o apregoa por aí; não
quer sarilhos, prefere confiar no tempo, que o levará de volta a casa um dia,
se não... paciência.
Apesar
de o achar o mais parecido comigo, em termos de feitio, não consigo conter-me
em certas situações, enquanto ele consegue. Chamam-me revolucionário
porque às vezes enfio um sopapo na cara de algum que me enerva. É o Artur o
primeiro a agarrar-me, o que não quer dizer que não esteja do meu lado ou que
não concorde com o que faço.
Há
três dias foi Natal. Sempre o passei em Lisboa, com camisolas de lã até ao
pescoço, as ruas iluminadas, as músicas natalícias na rádio. Nunca tinha
passado um Natal em tronco nú. Estava um calor especialmente infernal, passámos
o dia todo acampados perto de uma aldeia pequena. Aproveitei para tirar
fotografias à malta. O Afonso arranjou umas espumas brancas, daquelas de
enfeitar as árvores de natal, para fabricarmos uns enfeites à maneira! Foi uma
paródia a tarde toda, uma mistura de Natal com Carnaval, e como não tínhamos a
companhia da nossa família, e não tínhamos comprado prendas uns aos outros,
resolvemos embebedar-nos, como sempre que queremos disfarçar as nossas saudades
de casa, as tristezas.
Mas,
como dizia há pouco, a guerra para além de cruel, é ridícula. Nada melhor do
que aconteceu na noite passada para demonstrar que o que digo é verdade. E
depois digam-me quem é que é o louco...
Passava da uma da madrugada quando fomos todos
acordados. Estávamos em pleno mato, era necessário não alertar o inimigo que
nos emboscava. Pegámos nas nossas armas e preparámo-nos para um possível
ataque. É muito difícil ver de noite, na floresta, não havia lua, mas
conseguíamos ver perfeitamente imensos pontinhos luminosos, lá ao longe, tão
longe que era impossível distinguir quantos eram ou saber quem seriam e o que
estariam ali a fazer. Esperámos um pouco mais. Até que a ordem surgiu: o
primeiro Cabo mandou disparar até esvaziar a barriga das máquinas, e
assim foi. Disparámos durante mais de um minuto, mas ninguém ripostou. No fim,
as luzes continuavam no horizonte, mais brilhantes que nunca. Foi quando o
Artur, o mais esperto, se sentou num pequeno tronco de árvore tombado, e disse:
«Ao ponto que nós chegámos! Agora até fazemos guerra com os pirilampos...!!»
Não
é óbvio?!
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