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O Violinista

Vivaldi ribombava pelo quarto, em altos acordes lamuriosos. O violino quase quebrava os vidros toscos das janelinhas brancas. Gonçalo cofiava o bigode com porte de rico, ao jeito queirosiano. Perdera-se na imaginação de um sofrimento raro, apoteótico. Desesperara, chorando-se, rindo-se, com a intensidade dos volteados da música, forte e incisiva. Esfregara-se pelas paredes nuas, como que a dizer-lhes que eram suas, que teriam de se habituar a ele, aos seus devaneios, à sua suave loucura. O vento ouvia-se com violência no intervalo das faixas do disco. Era um domingo frio como uma pedra, a cheirar ao inverno verde do norte. Nada voltaria ao seu lugar, agora. Refugiado, exilado, fugitivo, Gonçalo era a sombra do que tinha sido em tempos, nos sonhos dos tios, dos pais, dos mestres que o queriam doutor das leis. De ascendência nobre, tectos dourados, porcelana da China, queria apenas fugir para Veneza, deleitar-se na Ponte dos Suspiros, partilhar as migalhas com os pombos c

A Vela e a Vingança

Quando olho aquela vela branca e inacabada, baixa, tremeluzente, cuja chama amarelada me ameaça com um fogo frio e inatingível ao toque, mas que me persegue por dentro, busca, corre, procura algo que ficou, que ardeu, que chamuscou a curiosidade mais profunda do meu ser... Lembro-me de uns olhos cujos segredos se encerravam na escuridão de uma cave, de um chão sujo, de umas paredes brancas. De uma mulher que se escondia por detrás de um sorriso de cobra, de palavras sábias e mordazes, de olhares incomodativos. «Que ódio!» pensava. Que vontade de a chamar presunçosa, convencida, mimada! Porque tinha ela que ter sempre os melhores argumentos, os sorrisos mais convenientemente hipócritas? Porque tinha ela de mostrar que era mais esperta do que eu? E quando me olhava no instante da ocasião, no silêncio, mandava os seus olhos dizerem-me «Vingança!», como se soubesse que esta lhe iria ser agradavelmente doce. Uma vingança sobre um assunto infantil, uma brincadeira sem

O Autocarro 2

Oh que dia! Atarefado, ocupado, cheíssimo de compromissos, pensamentos, projectos, sonhos, risos, conversas optimistas, imagens animadoras! Que futuro brilhante o seu; sabia exactamente o que queria, o que se iria passar. Era como se estivesse apaixonado pela vida e sorrisse feito tonto para as pessoas melancólicas que por ele passavam. Já não era um qualquer transeunte, um rosto comum, era alguém que encontrara um indício de felicidade, um emprego à sua medida, uma forma de realização profissional que o fazia esquecer tempos difíceis de procura, de solidão, de preocupações. Hugo ainda não tinha carro. Era essa a sua principal teimosia material, assim que começasse a ganhar uns bons dinheiros, era para aquele Honda cinzento do stand da sua rua, o seu carro de sonho. Mas, enquanto isso não acontecia não tinha outro remédio senão apanhar o 2 todos os dias, uma viagem longa entre a Serafina e o Rossio, durante a qual se habituara a ler o jornal de manhã e no regresso, à tar

Tari

Tari era uma estranha normal. Roupas normais. Cabelo curto normal. Sapatos normais. O riso era inevitavelmente enigmático e enfeitiçado, um mecanismo que denunciava toda a sua estranheza potencial; alguém que ela tinha sido até àquele dia e que sem perceber, ou sem querer perceber, deixou à solta numa noite caracteristicamente macabra. O oxigénio faltava onde o calor e o sufoco predominavam, mas um sufoco agradável, um calor inebriante, um delírio delicioso provocado pelo álcool e pela loucura da coragem. Um brinde especial a ela, Tari, pela sua volta, pelo passo gigantesco que empreendera. Por ela e só por ela. A música inundava-lhe a razão, toldava-lhe a visão jornalística que ela aprendera a usar desde muito nova. A objectiva repousava dentro da bolsa de couro, ao seu lado. Acariciava-a com a mão direita enquanto saboreava o jazz puro e sedutor. Tinha o cabelo espesso, espetado, uma mistura de desalinho com ordem. Suava deliciosamente, de olhos fechados, cabeça e

História de um Super-Homem

«Nem tudo têm de ser rosas. Nem todas as palavras têm de ser as mais sábias e belas. Nem todos os sentimentos são transparentes e inequívocos.» O chão parece mexer-se. É incerto onde colocar os pés com convicção e vontade de enfrentar a vida. Sorri, afinal, os sonhos foram estranhos e escuros, dormiu pouco e acordou cansado. Precisava de lavar a cara, de refrescar os olhos doridos do trabalho ao computador, das leituras até às duas da manhã para desencontrar-se com a insónia. Era isso, só tinha de meter-se debaixo de um banho quente, a ferver, e sair de lá como novo, libertando vapor e preocupações pelos poros; água e cansaço das pontas do cabelo. Olhava-se ao espelho embaciado. Tinha medo de esfregar a sua imagem, de a descobrir, de encontrar um rosto sorridente e amigável, uns olhos prontos a rir ou a chorar, uma alma frágil e triste, apenas consolidada pelo peso da responsabilidade, da força que o invadia quando todos os dias tinha de enfrentar as pessoas com

Alma Perdida

Q uando Raul e Patrícia chegaram do Brasil, Lisboa pareceu-lhes uma cidade muito estranha. Ora suja, ora branca. Moderna, mas antiga. Tiveram de descobrir quase tudo sozinhos, as ruas, o norte e o sul, uma nova sonoridade linguística, hábitos enraizados, um céu diferente, mais sujeito aos humores dos deuses europeus. Nos primeiros tempos, o casal de músicos, que se desiludira com a falta de oportunidades na sua terra, caminhou pelas colinas da cidade velha, percorreu as longas avenidas do centro urbano, observou as pessoas, as suas fisionomias, escutou os seus diálogos, estudou o seu comportamento, interrogou estátuas, edifícios e monumentos. Vinham à procura de uma alma, de uma essência que não fosse só a Bossa Nova ou o Samba dos seus conterrâneos. Disfarçando-se de pessoas vulgares, emigrantes normalíssimos em busca de um trabalho numa pastelaria, numa loja, Patrícia e Raúl apreciaram o desafio da arte musical e entregaram-se ao estudo dessa alma que procuravam. Encon

O Espelho

A água corria frenética no lavatório. O sangue soltava-se dos poros libertando culpa e violência. O seu respirar, o cansaço. As veias que não paravam de tremer. O sangue que desaparecia com a água. O espelho, cruel objecto de denúncia. Evitava-o. «Ricardo! Que vergonha! Outra vez à bulha!? Vai já lavar esse sangue! Seu rufia! Vais ver...! Um dia ainda te vais arrepender de seres assim!!». Não, não ia! Nem que morresse numa briga, mas nunca voltaria a ser cobarde! «Xoninhas... anda lá, não sejas cobardolas!» incitavam os miúdos da escola. Agora. Anos depois. O que seria dele? Quem seria ele? Não, não ia desistir! Ia ser duro até ao fim.   Negava constantemente aqueles momentos de lucidez em que a razão parecia arrepender-se dos males que praticara. Pensou muitas vezes em parar. Mudar de vida. Chegou até a trabalhar num restaurante mexicano. O resultado seria o esperado, não resistia à tentação de ser Deus, e como tal, arranjou destino ao Speedy Gonzalez , o s