No Topo do Mundo
I
«O que fazes aí em cima, a estas horas?»
Fingia não ouvir. Não tinha nada que ouvir. Ouvir
significaria ter de responder e a última coisa que me apetecia fazer naquele
momento era falar, espremer a mínima palavra da minha boca. Estava sob o efeito
de uma espécie de transe, de hipnose, de meditação. Precisava tanto daquilo
como o mundo precisa de chuva.
Sentia o frio passar despercebido pelos meus poros,
o vento zombar devagarinho nas minhas orelhas. Não conseguia sentir os pés nem
as pernas, era como se tivesse raízes enfiadas nas telhas, o tronco implacável
e duro como uma árvore.
Por vezes, abria os olhos para confirmar a imagem do
meu sonho, um cenário perfeito, mas incompleto. Sim, lá estava o rio, a noite,
a Serra da Arrábida, os barcos no Tejo, as estrelas da Antiguidade. Agradecia
ao horizonte a existência que me conferia. Depois, acordava do transe durante o
qual nada pensava e tudo sentia, e começava a sonhar com outras paisagens,
outros sentimentos, outras noites. Sonhava com uma grande viagem de comboio
pela Europa fora, sem prazos de retorno, apenas conhecendo, aprendendo,
observando e escrevendo muito, muito, como nunca escrevera antes. Carregaria
comigo um saco enorme cheio de suspiros e sorrisos de contentamento e
libertaria um ou dois pela janela do comboio sempre que tomasse consciência da
minha liberdade. Sonhava com as músicas e os sons de cada quilómetro
percorrido, bandas sonoras de aventuras, confianças, amores e amizades... Uma
vida em grande!
Mas, depois, fechava os olhos do coração, engolia em
seco e respirava fundo. Aquela não ia ser a minha vida, pelo menos tão
depressa. Era tão bom sonhar! Imaginar o futuro, partilhar essas visões com as
estrelas, com a lua, com o vento. Mas, sorria, ao mesmo tempo, com essa ideia
de que era ainda tão nova, que tinha tantos outros sonhos que poderia aprender
a realizar se ao menos me esforçasse.
Primeiro, tinha que lutar contra a falta de paixão
das pessoas. Contra a falta de vontade, de sensibilidade, de sinceridade.
Quantas pessoas não passam uma vida inteira sem dizer ou fazer o que lhes
apetece? Quantas desejam cometer pequenas loucuras, como sair à noite numa
terça-feira, ou soltar uma terrível e barulhenta gargalhada dentro do
autocarro? Na realidade, eu faço essas coisas tão vulgarmente, que mal as posso
chamar de loucuras. Também não precisaria de as fazer para saber que não regulo
muito bem, para isso, basta ouvir-me pensar. E são tantas as vezes que me
desmancho a rir no meio da rua, sozinha, com os disparates que me passam pela
cabeça ou com os que observo dos outros. E andam por aí tantos loucos... Mas, é
isso mesmo. Se quero rir, rio-me, ainda que pareça tonta, maluquinha. Em
qualquer lugar, a qualquer hora, desde que me apeteça. Acho que as pessoas
também se deviam rir mais, o riso liberta substâncias mágicas do nosso cérebro
e, para além disso, também provoca um estado de espírito mais livre, mais
solto. E eu acredito no riso espontâneo, na esperança e na força que ele exala.
Os que não sabem sorrir vivem amorfamente, com os espíritos atrofiados, cheios
de medo, e é por isso que existe falta de paixão em relação à vida quotidiana,
que de amores e desamores da carne é coisa que, graças a Deus, não falta por
aí.
A minha mãe continua a chamar-me e eu continuo a não
lhe ligar. São estes momentos que me preenchem, vou lá agora descer do topo do
mundo só porque é hora do jantar. Aguente-se! Este é o meu momento de egoísmo!
Onde é que eu ia? No riso, certo? Pois bem. Quando
fiz doze anos pus uma batelada de coisas na cabeça, e espero teimosamente
cumprir as minhas profecias. Vou lutar enquanto os olhos se me abrirem e o
cérebro raciocinar, para que as pessoas riam mais vezes. E para que sorriam,
cantem e dancem e se sintam mais felizes. Assim, talvez se combata a solidão
com uma maneira mais divertida de se estar só: rindo de nós próprios e rindo
dos outros. A troça é a coisa mais orgânica e natural do mundo, sobretudo
quando sabemos rir com os outros de nós mesmos. Depois, passados uns tempos, ir
de férias na tal viagem de comboio.
Abri os olhos e encarei a janela quadrada e fechada
do meu quarto. Apenas uns centímetros de céu se avistavam acima dos prédios em
frente. Já não estava no meu refúgio dilecto, já não tinha quinze nem doze
anos. Já não via o rio ou sentia o vento da noite; ou ouvia minha mãe chamar-me
das águas furtadas. Já não estava no meu antigo e companheiro telhado, onde eu
entortava o pescoço para trás e me deliciava com a grande placa azul escura com
pontinhos luzentes, a grande lua, como uma mãe a velar pelo céu, pela terra,
por mim.
Tinha à minha frente um caderno preto com alguns
apontamentos e eu sentia-me como se estivesse num qualquer dia do ano, num
qualquer dia da vida. Mas eu sabia que Outubro me brindava com uma nova etapa,
um novo desafio. Os anos que tinham passado eram apenas segundos transcorridos,
imagens ténues de rostos e lugares, algumas experiências. Naquele instante,
criara raízes de novo, o meu corpo era uma árvore e os meus olhos, abertos
sobre as folhas daquele caderno preto, estranhavam uma sensação intemporal e
megalómana de ver coisas que não estavam, na realidade, ali. Olhava de cima, em
frente. Assegurava as minhas profecias e teimosias. Jurava amor eterno aos meus
doze anos e àquela cabecita que delirava com um mundo sorridente.
Desatei-me a rir. Apercebi-me do inferno que iria
passar por aquela secretária nos próximos anos. Ri-me, aproveitando as réstias
de ingenuidade e de imaturidade do meu primeiro dia de aulas na Faculdade. «Boa
Sorte, Lena!»
II
Um dia memorável. Começara bem (com nervos e
preocupações) e prosseguia ao ritmo do martelo pneumático que perfurava a terra
dura, logo ali, do outro lado da parede. Parede essa que por sinal pertencia ao
Anfiteatro II da Faculdade de Letras, e dentro do qual, sim, dentro dele,
encontrava-se cerca de centena e meia de alunos, esforçando-se por conseguir um
desejável silêncio, uma intervenção divina que interrompesse o barulho
infernal. Uma paciência e uma concentração que se sumiam em cada dois minutos, em
cada vez que pareciam agarrar uma ideia brilhante, um item inteligente, uma
expressão adequada. Era o último teste do ano. O derradeiro teste de
Pré-História, porque nada melhor para acabar o ano como começar do princípio;
recapitulando; pondo à prova a memória, a capacidade de resposta.
Era Junho. Dia 12. O memorável dia que poria fim ao
sufoco de um primeiro ano de Faculdade. A partir dali ia deixar de ser caloira.
Tinha a consciência que estava exausta de tanta exuberância, tanto conhecimento
novo. Tinha aprendido, aprendido! Tão pouco foi ficando, foi sendo
assimilado... E eu tinha a sensação que tinha começado uma nova etapa, um
trilho infinito do qual tinha aprendido a percorrer as primeiras milhas, um
caminho vasto e armadilhado de sabedoria e mentira, dúvidas e certezas!
Agora era uma música horrorosa, medonha, que ecoava
pela Cidade Universitária! Havia uma festa na rua, estava a começar a actuar
uma banda de um mau gosto tremendo, e nós, espectadores atentos e silenciosos,
assistíamos, sentados na plateia, a um espectáculo estranho e disforme. O
martelo pneumático voltava. «Ptttttttttt!», «Naaão agueeento maaais
vivêê.... longe diii vocêêê!!» «O fenómeno megalítico acompanhou parte
do desenvolvimento Neolítico e perdurou no Calcolítico, tendo sido desde sempre
interpretado como um fenómeno mágico-religioso, em que os megalitos eram
utilizados não só com a função de demarcar territórios como também constituindo
importantes complexos funerários...» «Ppttttttttttt!!» «Ohh, meeu
amooor, lá, lá…» «Antas... Cromeleques… martelos… Pimba... menires
pneumáticos... ptttttttthistóóória!...»
«Ahh! Acabou!»
Fiz. Está feito. Mal ou bem. Acabei. Tome lá,
professora, passe muito bem, tenha óptimas férias! Adeusinho! Tchau, até ‘pró
ano! Uff!... com licença, com licença, deixem passar! Onde está a minha
mochila? Tantas malas, tantas pastas, tudo acumulado ali à frente, no estrado
da professora... há doidos para tudo! Não interessa, adeus.. Ah, aqui está ela!
Pois bem, é agora... Shiu, cala-te, ainda estamos a fazer o teste! Ai, pois é,
desculpem, adeus, boa sorte. Com licença, deixem passar. Ai que a porta não
abre! Ah, é ao contrário!... Já está. Já saí. Estou fora. Consegui. Uffa.
Silêncio.
Morte? Vida? Vazio ou cheio? Quem está aí? Porque
está tudo branco? Porque não consigo abrir bem os olhos? De onde vem este
brilho, este calor? Sinto uma brisa quente, um tumulto. Crianças?! Ouço-as a
rir e a cantar! Shh... Quem está aí? O que quer? O que se passa? O que é isto
debaixo dos meus pés? Cheira a terra, a árvores, a mar; cheira a praia, a
bronzeadores fajutos; cheira ao cloro da piscina! Ajudem-me! O que se passa?
Porque não vejo nada, porquê tanto brilho? Fere-me os olhos, quase me engasgo
com o medo de cair num buraco de ar quente, de ser sugada para fora do espaço e
do tempo!... Socorro!! Deus, ajuda-me!
«Lena.»
Quem está aí? Quem falou? Quem me chamou?
«Lena.»
Sim, estou aqui!... Estou a ouvir-te!
«Fecha os olhos e põe a indignação de parte. Agora,
abre-os e repara que à tua frente está o mundo.»
O mundo... sim, é verdade, já consigo ver para além
do brilho! É uma bola gigante, azul e verde.
«Esse é o mundo onde vives e do
qual fazes parte, ele não é uma ilusão, nem tu o podes conceber como tal. O teu
mundo não precisa só que o estudes ou memorizes para depois esquecer tudo.»
O que queres que faça? Estou cansada, a minha cabeça
já não sabe onde anda...
«Ele precisa da tua loucura, das tuas acções,
precisa que o pintes de novas cores! Abandona a posição de que te ocupaste no
último ano. Procura uma diferente perspectiva para o mundo que te habituaste a
ver de fora. Veste a pele de uma personagem por ti inventada e procura viver as
histórias que um dia serão escritas e lidas num livro. O teu mundo espera-te.
Tem-te esperado há vinte anos.»
Frio. Arrepio na espinha. Rápida tontura. Breve
desmaio. Em pé, segurava-me pelas pontas dos dedos. Acordo do meu transe que
nunca aconteceu e olho para trás. A porta do Anfiteatro está fechada. Abre-se.
Saem mais colegas. Contentes, furiosos, confiantes, sorridentes. Foram muitos
meses a estudar, a ler, a decorar, a inventar frases escritas para trabalhos
académicos que nunca fizemos antes, a entender vocabulários compridos e
desnecessários proferidos pelos mestres. Muitos anos, séculos, milénios,
civilizações egípcia, suméria, acádica, grega, romana, pré-histórica,
metodológica...! Meses de informação histórico-arqueológica a ser deglutida,
enfiada pelas goelas abaixo! É já a pressão das notas, das médias, «Não podes
ter menos de 14... Não podes ter menos de 14... Não és ninguém na vida, não te
aceitam nos empregos, nos mestrados, nas grandes oportunidades da vida...»
BAASTA!
Vou fazer como Deus disse. Baixar a cabeça, mostrar
humildade, serenidade e respirar fundo. Depois subir a cabeça, dar um passo em
frente, depois outro e depois outro. Enfrentar o que lá vem com curiosidade,
força de vontade, brilho nos olhos.
O céu estava agradavelmente azul, as ramagens das
árvores dançavam na brisa. A Cidade Universitária estava de novo em paz, sem
ruídos, sem sinais ou sintomas de obras ou pimbalhadas. Era dia 12 de
Junho, à noite era véspera de Santo António. Lisboa ia estar em festa. Febras,
sardinhas, caldo verde e sangria. Bailaricos, marchas, caminhadas pelos bairros
históricos, tubinhos amarelos fluorescentes à volta dos pescoços, das testas...
A festa da família lisboeta. Se não há disposição, há que inventá-la, porque
Santo António é só uma vez por ano!
Daí a uma semana seria outro dia memorável para mim.
Um vigésimo aniversário celebrado num dia 20, a assinalar a boda de
pechisbeque, o início do Verão, o verdadeiro ponto de partida para umas férias
diferentes, activas e aventureiras... Seria?! Iria mesmo viver aventuras em
escavações arqueológicas, viagens, amizades e experiências enriquecedoras?!
Teria mais uma colónia de férias com miúdos impecáveis, como todos os anos?
O brilho... A brisa... O odor da terra e do mar... O
som das crianças... do riso... O prazer de combater a clausura do escuro, da
prisão do compromisso, do sufoco de querer e não poder... E tudo se desvanece,
se esfuma em milhentas partículas de vapor e o brilho dissipa-se. Não é mais
branco infinito, neblina, é azul sobre ouro, é verde e castanho. É, enfim, o
coração livre e a coragem de atirar ao ar os apontamentos de Pré-História e
gritar a plenos pulmões: «LIBERDADE!!!».
III
São oito e cinco da manhã. O combóio partiu
há dois minutos. Já não vou a tempo de saltar, de voltar atrás. E pronto, já
vai a alta velocidade! É agora. A minha peça de teatro vai começar. Os actores
andam desesperados à procura dos seus papéis. Está tudo trocado! O texto foi
alterado! É preciso improvisar, a arte acima de tudo! Os espectadores procuram,
frenéticos, os seus lugares. Não há lugares?! Ficam de pé, também têm de
improvisar. O teatro acima de tudo! O cenário é diferente?! Porquê, quem o
mudou?! Porque enlouqueceu tudo? Quem roubou a ordem a este espectáculo?! Quem
o alterou?
Eu. E tornava a fazê-lo de novo. Gosto de ver os
actores a representar na plateia e os espectadores amontoados no palco, sem
saber se também podem participar no espectáculo. Loucura saudável a dos vinte
anos. Passa-se tudo nas nossas cabeças. As ideias e os sonhos voam a mil à
hora! É quase impossível controlá-los! Mas, é tão bom! E é ainda melhor quando
tomamos consciência disso!
E lá vão as primeiras árvores, os primeiros passos.
E lá vai a primeira palavra, a primeira nuvem, a infância passageira... Ao
longe, ficou o mar, a adolescência, o primeiro beijo, o primeiro desejo de
liberdade. Os prédios cinzentos, as tristezas, as revoltas... O céu branco, o
sono, o sonho, a vontade de vê-lo azul! O suspiro. Os olhos fechados. A lágrima
da emoção, da saudade. O sorriso nervoso da aventura, da descoberta, dos vinte
anos.
O que ficou para trás é importante demais para
esquecer. O que vem pela frente é incerto demais para confiar. Neste momento,
não sou eu que conduzo o meu destino, são os carris. Abstraio-me da minha
missão e finjo ser parte da máquina de ferro. Pouca Terra. Pouca Terra...
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