Hell Xis
A luz azul do semáforo abre. O som abafado
dos motores ronca. A poluição esvai-se em tubos de ventilação; o fumo
consome-se a si mesmo, é vapor, desaparece. Os automóveis voláteis circulam por
túneis infindáveis, pontes efémeras à superfície, estradas protegidas por
fossos de energia que amortecem choques e evitam os assaltos dos esfomeados
subterrâneos. Há quem oiça ainda os clássicos dos Metallica, de Marilyn
Manson. São os rebeldes quarentões que não aguentam o frio das leis, do progresso
harmónico da nova cidade-estátua.
A cidade é Lixboa, evoluída, defendida,
inteligente, cruel. As ruas estão desertas de dia; de noite são assaltadas por
bandos de vagabundos ignorantes, calcorreadas por vigilantes atentos,
corajosos, robotizados, outros ainda, humanizados.
A ponte velha, que unia em
tempos as duas margens do rio Tedjo, jaz, partida ao meio, quebrada, seus
pedaços pendurados à chuva, restos enferrujados de carros continuam presos ao
tabuleiro. A ponte é monumento histórico, considerado pelos filósofos do mundo,
obra de arte primorosa, signo de um passado estranhamente mecânico, amostra do
atraso ao desenvolvimento da Engenharia Viária de Túneis e Subterrâneos. Focos
de luz iluminam o movimento fantasmagórico do objecto já sem vida; denunciam na
mancha azul escura e cinza da cidade um traço do antigamente. O rio,
embaixo, mais duro, mais estreito, foi desviado para norte. O braço que banha
parte da antiga baixa transformou-se, com os anos, num grande lago, uma bacia
que viu o seu caudal crescer com o aumento das águas residuais, com o gelo
desmanchado das montanhas da península.
A noite em Lixboa cheira a
perigo, a rio, a fumo, à água que escorre nas mangueiras que lavam as ruas. As
luzes são amarelas; iluminam as fachadas dos prédios, as estátuas
paralelepipédicas, os grandes monumentos restaurados, as pedras brancas das
Praças esvaziadas. Lixboa não dorme, há quem vigie sempre o sono da sua
população.
Lucya estava cansada.
Perseguira um vagabundo até às Olaias; escapara-lhe por uma unha negra, o
malvado. Era aquele X-305, o bandido que prendera meses antes, por ter
assassinado duas crianças que haviam fugido dos limites de segurança da escola.
As crianças eram já uma raridade, não podiam dar-se ao luxo de as perder por um
punhado de feijões e milho. Tinha sido de novo avistado perto da Fonte
Luminosa, traficando comida e sapatos com os vagabundos da Penha de França.
Aquele homem era, sem dúvida, um alvo a abater. Criminosos daquela estirpe que,
mesmo desmemoriados, conseguiam escapar aos limites da lei, eram casos raros de
maldade, que faziam o que faziam por prazer, e não só para poderem comer e
sustentar a família. X-305 era uma obsessão de Lucya, que, enquanto não o
recapturasse, não dormiria descansada tão depressa.
Lucya entrou no metro às
cinco e dez da madrugada e digitou para a esquadra que o suspeito ter-se-ia
infiltrado no Subterrâneo do Subúrbio Oriental. Era tarde, precisava de ir para
casa descansar. Às nove da manhã entraria no Instituto Inglês para mais uma
segunda-feira de aulas. Ensinava Inglês, o latim dos tempos modernos, História
(era importante não esquecer os erros da Humanidade) e Informática às crianças
de seis anos que tinham conseguido atestado de inteligência básica. Aqueles
alunos eram treinados desde o seu nascimento para serem os futuros engenheiros
das necessidades urbanas, os futuros governantes, os futuros cientistas. Não
eram simples portugueses, eram sobretudo europeus, educados para saberem viver
em qualquer canto do mundo ou da Europa. Do género de europeus que transforma
os nomes das cidades ou dos rios apenas para que soassem melhor em Inglês,
ainda que depois viessem dizer à população que essas alterações eram sobretudo
“culturais”, que Lixboa com xis era como se escrevia há muitos
séculos... No entanto, e contraditoriamente, a consciência nacional já não era
veiculada pela escola, receptáculo de conhecimentos científicos uniformizados,
mas pela vida do dia-a-dia, nos túneis da cidade, onde a cultura, o convívio e
a cor imperavam. Era aí, debaixo da terra, que se encontravam os ritmos
apressados, o comércio, o teatro, o cinema, os restaurantes, os parques de
diversão, os museus. Ali, longe da chuva, da lama, dos meteoritos, dos mísseis,
dos atropelamentos, da poluição, dos ladrões.
«O mundo só pode estar
pior!», comentou Lucya com outro vigilante que a acompanhava no metro. «Já nem
acredito que tentamos capturar estes homens para os podermos desmemoriar.
Parece-me tudo um saco roto! Por mais que os desmemoriemos e os reabilitemos,
há sempre mais um sacaninha que nasce e se multiplica cá em baixo!»
«Ficas assim sempre que um
desmemoriado recupera a memória e foge... Vais ver como daqui a uns dias o
apanhamos! Vai receber cá um tratamento!»
Lucya e Alexi já não tinham
brilho nos olhos. Eram invadidos pelo sono e pela fadiga, falavam por falar,
coisas que qualquer vigilante falaria para outro às cinco e tal da manhã. Alexi
despediu-se em Alvalade e Lucya continuou até à Pedreira, o Alto marginal ao
Lago que inundara a antiga Praça do Município e parte do Cais do Sodré. A saída
do metro desembocava no túnel da Baixa, onde a maior concentração de lojas,
restaurantes e cinemas se reunia.
As ruas subterrâneas de Lixboa eram
extremamente seguras, os vigilantes espalhavam-se pelas esquinas, câmaras
monitorizadas espreitavam movimentos anormais de medo, pânico, alerta. Os
altifalantes da Rádio Lixboa anunciavam espectáculos culturais, vinte e quatro
horas por dia, emitiam músicas de todos os tipos, transmitiam as notícias do
mundo, informações, recados pessoais aos ouvintes transeuntes. A população
jamais se sentiria afectada pela Solidão, pois a par do grande progresso da
Engenharia Urbana, os governantes sentiram urgência na implementação da
Felicidade e da Segurança das pessoas. A Solidão era já considerada uma doença
extinta. Ainda que sozinhas, as gentes de Lixboa estavam constantemente
acompanhadas pelo som do locutor de rádio, pelas televisões nas montras das
lojas, pelos vigilantes inertes, pelas câmaras que as protegiam. E assim,
sempre que saíam à rua, os habitantes da cidade não tinham um minuto de
individualismo, de sossego, porque o governo tinha decidido erradicar a solidão
da Sociedade. E as pessoas aprendiam isso na escola, não questionavam nada que
tivesse que ver com o conceito governamental de Felicidade, e por isso,
acreditavam que eram felizes. Os rebeldes que viviam no Subterrâneo do Subúrbio
não seguiam a Política da Felicidade do governo, e por isso passavam fome. E a
fome, tanto no futuro, como no passado, gera a violência, daí os criminosos da cidade
serem apenas vagabundos esfomeados que precisam roubar e traficar comida para
conseguirem sobreviver. São os Resistentes da Solidão.
Lucya passou pela loja e fez
umas compras; meia-hora depois viu-se na cave do seu prédio. Subiu as escadas
de mármore, o corrimão iluminado de um azul incandescente apontava-lhe o
caminho. O edifício não tinha elevador porque era um clássico da Arquitectura
de meados do século XX, tinha, no entanto, um moderníssimo ascensor automático
exterior, em forma de cápsula de vidro, permitindo um transporte mais rápido e
seguro aos andares pretendidos. Mas, Lucya não gostava daquelas modernices,
eram coisas para crianças que não tinham aprendido a subir escadas.
Subiu até à cobertura. O telhado da sua casa
era de vidro inquebrável. Vivia no céu, diziam as sobrinhas gémeas, de quatro
anos. Mirava o grande Lago Tedjo a dois passos das suas janelas invisíveis. E
era dali que assistia, todos os dias, ao nascer e ao por do sol da cidade. Era
uma visão intemporal, e todas as manhãs, agradecia ao grande astro por não ter
ainda desaparecido, pedia protecção, uma felicidade real, noites inteiras de um
sono saudável, que as crianças continuassem a sorrir. À noite, pedia à Lua
exactamente o mesmo. Sempre.
Lucya não sabia, mas o que fazia do alto do
seu mundo era rezar, como em tempos se rezava a Deus, aos Santos, a Jesus. Mas,
tudo isso fazia parte do que ensinava em História às crianças.
Aquela cidade era um hino surdo.
Pedia Justiça e por isso se tornara vigilante durante a noite. Pedia Educação e
Civismo, e por isso se tornara professora durante o dia. Quando a insónia a
atacava, dava por si a pedir paz. E por isso, rezava.
(publicado em 2001 no DNJovem)
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